Por Thamirys Pereira Soares da Silva
Pesquisar, pensar muito é o que fazemos ao ouvir as músicas
de Zé Ramalho.
Na música Vila do Sossego, Zé Ramalho fala do casamento e da traição. Mas afinal, o
que é trair? E, principalmente, por que trair?
Enfim, comecemos pelo início, pelos primeiros versos da
primeira estrofe.
Oh, eu não sei se
eram os antigos que diziam
em seus papiros,
Papillon já me dizia
que, nas torturas,
toda carne se trai;
que, normalmente,
comumente, fatalmente, felizmente, displicentemente,
o nervo se
contrai... com precisão.
Fica mais
fácil entender esses versos se soubermos quem foi Papillon, um homem que era
muito mais do que um prisioneiro francês cumprindo pena na Guiana Francesa há
algumas décadas atrás.
Injustamente
acusado pelo assassinato de um gigolô, Papillon tinha pena de prisão perpétua a
ser cumprida na Guiana Francesa, à época colônia da França. No pátio do
presídio, logo foi prontamente avisado de que qualquer tentativa de fuga seria
punida com o prazo de dois anos em solitária e, caso houvesse reincidência,
esse prazo subiria para cinco anos.
Entretanto,
Papillon não tinha nada a perder. Com a ajuda de seu aliado Louis Dega,
realizou sua primeira tentativa de fuga. Foi pego e mandado para a solitária,
onde acabaria morrendo antes que se findassem os dois anos. Mas Dega, que a
essa altura já o estimava muito, conseguiu infiltrar cocos na água que lhe era
dada todos os dias pelos guardas, ajudando-o a ter forças para sobreviver.
Papillon,
porém, foi descoberto outra vez. Lhe deram duas opções: dizer quem o tinha
enviado os cocos ou passar seis meses de sua pena com a comida reduzida à
metade e em total escuridão. Papillon ficou com a última. E isso explica estes
primeiros versos.
Apesar de
torturado pela fome, pela fraqueza, Papillon não traiu seu companheiro, mas
ele, nesse tempo, pensou seriamente em fazê-lo. É natural, é normal do ser humano
trair quando submetido a pressões e situações como essa, e ele já sabia disso.
Nos aviões que
vomitavam pára-quedas,
nas casamatas,
casas vivas, caso morras
e, nos delírios,
meus grilos temer:
o casamento, o
rompimento, o sacramente, o documento,
como um passatempo
quero mais te ver... com aflição.
Mas a
traição que Zé Ramalho comenta nessa música não diz respeito à lealdade, mas à
fidelidade. A sua tortura não é física, mas mental, psicológica, sexual. É na
pele de homem casado que deseja uma outra mulher que Zé nos fala.
Os aviões vomitando pára-quedas se referem ao esperma em uma
ejaculação na hora da traição. Os pára-quedas seriam os seus espermatozóides,
na tentativa de sobreviver (os seus genes) nas casamatas, "casas
vivas" (a amante). "Caso morras", ou seja, caso ele morra, a
propagação da sua linhagem está garantida.
A libido
confronta-se com a razão. Poderia trair e acabar logo com isso. Mas tudo tem
consequências. Para decidir-se, precisa equilibrar tudo em uma balança
emocional: o casamento, o rompimento, o sacramento, o documento e o desejo de ver, de ter quem realmente quer.
Meu treponema não é
pálido nem viscoso.
Os meus gametas se
agrupam no meu som.
E as querubinas,
meninas, rever.
Um compromisso
submisso, rebuliço no cortiço,
chame o Padre Ciço
para me benzer... com devoção.
Nos versos
desta última estrofe o treponema cantado por Zé Ramalho faz referência ao treponema pallidum, o agente causador da sífilis. E
citar a doença nesta estrofe é importante para a sua compreensão. A sífilis
seria, para Zé Ramalho, um impedimento ao sexo. Mas o seu treponema, o que lhe
atrapalha o sexo, não é a sífilis, visto que não é pálido nem viscoso. Podemos,
então, subentender que tal impedimento, como já é cantado em todo o decorrer da
música, é o casamento.
Podemos ter
ainda mais certeza de que essa música fala do desejo incontrolável de um homem
casado por uma mulher, que não a sua, quando Zé nos diz ter agrupado os seus
gametas em seu som, sua música.
Sucede que
o eu lírico acaba por trair, não só à sua mulher, mas também a si mesmo. É
então que reconhece o seu pecado e anseia por perdão, não só vindo de sua
companheira, como também o perdão divino.