A trama estava armada contra Jesus. No
meio do complô estavam a aristocracia laical e religiosa e o colaborador
indispensável para a prisão de Jesus: o traidor, Judas. A ação da tropa
deve ter surpreendido a todos; da parte dos discípulos houve uma pequena
tentativa de resistência que culminou no decepamento da orelha de um soldado
romano por um golpe de espada.
A tradição é unânime em recuperar esse
dado e João é o único evangelho que diz que o discípulo que procurou defender
Jesus foi Pedro. Mas Jesus claramente ordena que o discípulo, seja ele quem
for, guarde a espada. Por que Jesus impede a legítima defesa?
Por que a trama narrativa precisa
continuar, diriam uns. E estão certos. Os Evangelhos são fundamentalmente
narrativas querigmáticas (anúncio do mistério pascal de Cristo) que desenrolam
nas palavras e gestos de Jesus o que foi sua vida e como ela se desdobrou para
chegar ao suplício da cruz e à ressurreição. Mas quero discordar de antemão de
uma leitura que imagine que os Evangelhos conduzam para o mistério pascal e que
só lá, nos capítulos sobre a morte e a ressurreição, é que finalmente a vida de
Jesus faça sentido.
Se os capítulos sobre a morte e a
ressurreição são o clímax da trama, isso não justifica descartar toda a trama
em nome do clímax. Tudo o que se diz antes já revela quem Jesus de fato é. Tudo
o que Jesus realiza antes de sua morte e ressurreição já nos salva (isso é o
que entendemos por encarnação, se quisermos falar dela com decência teológica).
Logo, a frase de Jesus sobre guardar a espada não está só em função de uma
trama que precisa desenvolver-se, mas tem sentido em si mesma.
Porque Jesus tinha que morrer, é outra
possível resposta. Como um vivente, por certo, pois tudo que está vivo, um dia,
morre. Mas ele não tinha que morrer de morte matada. Porque é isto
a cruz: um assassinato. Uma trama macabra para silenciar um homem que estava
perturbando a ordem religiosa e social de sua época.
A cruz era uma condenação horrenda, e
Jesus morre como um maldito entre ladrões. Nada justifica dizer que é da
vontade de Deus que seu filho amado morra, nem tampouco dizer que Deus precisa
do sangue do próprio filho para nos salvar. Essa soteriologia vicária nos
rendeu menos amor que medo por essa imagem de Deus, que mais parece uma imagem
vampiresca.
Qualquer frase bíblica que permita essa
interpretação errônea e horripilante não passa de má interpretação, pois ou
está em função de um dado teológico relevante (Deus não faz nada para evitar a
morte do filho) ou em função de uma teologia propiciatória (tipicamente
paulina). Ou seja: à primeira leitura, confusões podem se dar mesmo e, embora
esses temas exigissem outros artigos, o que convém ressaltar é: Deus não
precisa da morte do filho, mas a recebe. Jesus, então, não manda guardar a
espada, porque queira morrer ou porque esteja seguindo algum script que
ordena a sua morte; ele não é nenhuma espécie de masoquista ansioso por sofrer.
Jesus via sua morte como entrega, dirão
outros. De novo, o Evangelho de João é o que mais ressalta esta característica:
Jesus é quem dá a sua vida, ninguém a tira. Mas, em todos os outros Evangelhos,
é possível perceber que Jesus não volta atrás em sua palavra. É fiel àquele
anúncio que norteou a sua vida. Jesus crê que é possível que o matem, mas não
serão capazes de arrancar o sentido que encheu sua existência: e isso ele
oferece (porque o tem) – vida em abundância. Sua confiança naquele que chamava
de Pai e seu Reinado, que acontecia por meio do amor ao próximo que ele
ensinava e vivia, eram mais fortes do que o medo da morte. Deveria ele, por
medo da morte, desmentir tudo o que havia dito e fugir dos compromissos e das
consequências que sua vida havia provocado? Ele poderia tê-lo feito, mas que
tipo de existência ele viveria depois de negar o segredo de seu próprio espírito?
Então, se Jesus pede para guardar a espada, é porque ele precisa ser coerente
com seu anúncio de amor e de paz, apesar da violência que o cerca.
E se quisermos buscar nas fontes
bíblicas textos que desenvolvam o que Jesus propõe, poderíamos recuperar não poucas
palavras: “evitai que ninguém retribua o mal com o mal, mas encorajai que todos
sejam bondosos uns com os outros” (1 Ts, 5, 15); “não retribuindo mal com mal,
tampouco ofensa com ofensa; ao contrário, abençoai; porquanto, foi justamente
para esse propósito que fostes convocados, a fim de também receberdes bênção
como herança” (1Pd 3,9). E se quisermos ficar apenas com as palavras de Jesus,
veremos que ele é bastante contundente: “Vocês ouviram o que foi dito aos seus
antepassados: ‘não matarás’, e ‘quem matar estará sujeito a julgamento’. Mas eu
lhes digo que qualquer um que se irar contra seu irmão estará sujeito a
julgamento” (Mt 5,21ss). Ou ainda mais: “Ouvistes o que foi dito: olho por
olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se
qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser
pleitear contigo, e tirar-te a túnica; larga-lhe também a capa…” (Mt 5,38ss).
Sendo assim, no “guarda a espada” de
Jesus ecoa todo um projeto de superação da violência e de investimento na paz e
no amor. Aliás, não faltaram discípulos decepcionados com Jesus, inclusive
Pedro, porque o projeto do Senhor não era o de vencer pela força; não era o de
implantar seu reinado à fórceps, ou de obrigá-lo boca abaixo pela força de seus
anjos; não era exigir a conversão e a mudança fazendo cair uma tempestade do
céu. Sua mensagem era uma proposta de liberdade e fraternidade que admite ser
rejeitada.
É evidente que sendo fiel ao seu
projeto, não o negando e não voltando atrás nas consequências de sua mensagem,
Jesus não está proibindo a legítima defesa. É um instinto natural e uma atitude
de bom senso defender a própria vida e a daqueles que amamos quando essas se
veem ameaçadas. Isso está longe, entretanto, da violência pela violência, ou da
desmesura em que o ódio nos coloca. A vingança, o ódio, a frustração de nossos
desejos, os medos, as angústias mal resolvidas podem nos lançar na violência
com muita facilidade. Legítima defesa é outra coisa.
Aí entra o Bolsonaro e sua pauta
polêmica do armamento da população. O descrédito com a justiça no nosso país,
com a segurança e com a educação, estão nos fazendo trocar aquilo que é
fundamental pelo incerto e perverso. Permitir o porte de arma não resolve os
problemas mais cruciais. Alguns poderiam argumentar que resolve o problema do
ataque dos bandidos, instaurando neles o medo e o receio de praticarem a
violência já que as vítimas potenciais agora poderiam se defender.
O medo, entretanto, não impede nenhum
ato de violência, muito pelo contrário, o incita. O problema da violência não
será resolvido combatendo seus efeitos (que é quando o bandido chega a arma na
cabeça de alguém, p.ex.). Isso, porque as causas continuarão em funcionamento.
Do mesmo modo, apenas prender os bandidos, sem rever o sistema penitenciário é
algo que já comprovamos que não funciona. Também não funciona armar a
população: ou vamos eliminar bandido produzindo assassinos? Corre-se o sério
risco de não se olhar, assim, para as causas mais profundas dos problemas, propondo
resolver as questões não em sua raiz, mas de modo superficial.
O mais fundamental é gerar educação,
promover justiça, cuidar da saúde pública. Essas pautas mais concretas não
aparecem nas discussões em torno do presidente Jair Bolsonaro. Em contrapartida,
suas falas estão permeadas de preconceitos em relação à mulher, aos
homossexuais, aos quilombolas, aos sem-teto, aos sem-terra, aos usuários de
drogas, aos pobres em geral.
A desconfiança do presidente Jair
Bolsonaro aos direitos humanos é aplaudida por muitos. É possível compreender
que a população esteja completamente desacreditada das estruturas que deveriam
garantir os direitos, mas negar os direitos humanos, isso já é demais, é
retroceder muito. Para fazer os direitos valerem, o caminho não é
desacreditá-los, mas promover uma transformação profunda das instituições que
comece por ouvir a população. Isso, sem deixar de mencionar a tão necessária
reforma política, sem a qual não pode haver uma transformação social honesta.
Armar a população não é solução para
nada, mas pode produzir efeitos contrários drásticos. Num país cujas taxas de
feminicídio são altas, onde os crimes de homofobia e transfobia só crescem, em
que os crimes passionais são cada vez mais comuns, em que a violência por causa
de discussões triviais é banalizada, o porte de armas de fogo só pode piorar a
situação. Lembrem-se que o medo da ameaça não abaixa a adrenalina, só a
aumenta…Depois, seria bom perguntar quem lucra com o armamento da população; a
indústria armamentista certamente fará a festa. Em contrapartida, o mais
acertado é proteger melhor as fronteiras para evitar o tráfico de armas,
endurecer mais a compra e venda das mesmas e se colocar para solucionar na raiz
os problemas mais profundos de nossa sociedade, dentre os quais estão a falta
de justiça, o profundo abismo entre poucos ricos e uma imensidão de
empobrecidos, que é uma das raízes da violência.
Alguns poderiam argumentar que
Bolsonaro é boa opção porque é contra o comunismo, a cartilha gay, a favor da
família nuclear, ou contra o aborto. Que sua política de armamento é só um erro
em meio aos acertos. Podemos apresentar algumas intuições em relação a essas
pautas.
1.
Ganhou
relevância dizer que tudo aquilo que toca as causas sociais, o direito de
todos, o desmonte da meritocracia a favor da distribuição de oportunidades seja
petismo, lulismo, comunismo, socialismo. Há muitas controvérsias sobre o uso
das palavras socialismo e comunismo. Ao citá-las, nem todo mundo entende a
mesma coisa, mas grande parte da população brasileira as entende como uma
grande ameaça ao país, como se aqui fosse instaurar-se um governo como o de
Maduro ou Chávez. Sabemos que o socialismo real foi uma catástrofe, mas o
socialismo utópico e o real são a mesma coisa? Citam Marx, mas o próprio socialismo
marxista evoluiu e não fala mais de luta de classes, ao menos não como antes.
Enfim, as categorias “comunismo”, “socialismo” e
até mesmo “petismo”, “esquerdismo” se tornaram omniabrangentes: são palavras em
que cabe tudo, estão superinfladas e, talvez por isso, não digam mais nada de
sério. Problema sério é o capitalismo também. Mas desse ninguém fala. O direito
à propriedade privada é um ganho, mas esse sistema produz ainda hoje injustiças
gritantes, camadas de pobres cada vez mais miseráveis, fome, mais e mais
desempregados, uma globalização assimétrica. Ora, sistemas econômicos são
problemáticos, não devem ser idolatrados, têm de ser constantemente revistos.
Mas o problema mais grave ainda não está posto.
O problema mais grave é o fascismo: a tendência ao
autoritarismo, nacionalismo fechado, desprezo pelos direitos humanos,
supremacia militar, sexismo desenfreado, controle das mídias de massa, obsessão
com segurança nacional, nepotismo desenfreado, desprezo pelas artes e por
intelectuais, poder de corporações em alta, poder de trabalhadores suprimido.
Um discurso de ódio (ou radical) em que se vê potencialmente tudo isso, é
assustador.
2.
A
escola é uma das instituições brasileiras que precisa de socorro. Mas uma
educação em que não se possa ler os clássicos nem sequer discuti-los não
promoverá um ensino consistente. Também uma educação que não possa falar de
sexualidade, fica engessada e embaraçada em preconceitos e tabus. O moralismo
crescente, a dificuldade de aceitar o diferente e de compreender as diferenças
nascem justamente de uma educação enquadrada. A sexualidade é uma das dimensões
humanas mais ricas, é amplamente experimentada durante a vida, tendo em vista
que não se pode reduzi-la ao sexo. O lugar de seu aprendizado é a família. Mas
é também a escola, a Igreja, porque não há como falar do humano ignorando suas
constituições mais elementares, e a sexualidade certamente é uma delas.
A Igreja não raras vezes toca neste assunto,
procura orientar os seus adeptos, apresenta suas normativas, não é mesmo? Por
que a escola não poderia falar sobre sexualidade e sexo? Falar sobre
sexualidade não cria pervertidos. Nem tampouco falar sobre as diferenças
sexuais. A própria experiência falsifica essa crença. Vejamos a ambiguidade que
há na compreensão do papel da educação: para esses grupos radicais, ela não é
capaz de salvar as pessoas do mundo do crime, das drogas e do banditismo (daí
que bandido bom é bandido morto), mas é capaz de produzir gays e perversos
sexuais, como se essas orientações fossem efeitos de doutrinação (e assim
pudessem ser desdoutrinadas). Além disso, Bolsonaro apontou uma cartilha que,
segundo ele, era adotada pelo MEC.
O livro nunca foi adotado pelo MEC, segundo o
próprio ministério da educação e a própria autora. A crítica sobre o que é
ideologia de gênero, por sua vez, passa por um desentendimento radical sobre o
que significa propriamente gênero, tipificação de gênero, orientação sexual e
afins. Quando nem sequer as terminologias e conceitos são dominados e
entendidos, a que tipo de críticas estamos assistindo, senão a críticas também
ideológicas? Mais uma controvérsia, enfim: ao falar tanto contra a sexualidade,
o presidenciável põe em relevo sua obsessão pelo assunto. Todo excesso pode
indicar uma falta. Do que será que Bolsonaro realmente está se queixando?
3.
A
família nuclear é uma invenção burguesa. Ao dizer que família é apenas aquela
formada por pai, mãe e filhos, nega-se todo um espectro de possibilidades
familiares. Uma série de pessoas que defendem esse modelo familiar fazem parte
de famílias recompostas ou monoparentais. Lembremo-nos que Jesus vem de uma
família em que seu pai é adotivo, se quisermos ser fieis à tradição. Agora, se
o problema for assumir que há famílias homoparentais, sugerimos lembrar que os
homossexuais querem seus direitos civis garantidos e esses não lhes podem ser
negados já que são cidadãos como quaisquer outros. O Estado é laico e as
misturas entre religião e estado até aqui vistas na história não redundaram em
benefícios para nenhuma das duas. A religião deve permanecer crítica em relação
à política e não se diluir nela.
4.
Não
sou a favor do aborto, mas se quisemos ser pró-vida, devemos falar de uma vida
que seja defendida de seu início até seu fim digno. Não é suficiente defender
apenas o feto e depois defender pautas como o armamento, ou a morte de gays, ou
fuzilar pessoas com opiniões contrárias. Depois, será preciso reconhecer que há
casos muito específicos discutidos, inclusive, pela bioética e pela teologia em
ambientes católicos, universidades, centros de teologia. Seja como for, a
proibição não vai acabar com os abortos clandestinos. Que políticas públicas
vão ser desenvolvidas para salvaguardar a saúde das mulheres? Além disso, a
discussão mais uma vez fica enviesada, pois é justo defender o direito à vida
de um nascituro, mas não se pode falar de sexualidade consciente.
Deve-se defender a vida, mas não se pode olhar para
a figura do feminino com o devido respeito, reconhecendo-a em sua dignidade e
seu importante papel, relegando-a aos papéis sociais que a cultura machista lhe
incumbe. A discussão vai de novo para os efeitos, não para as causas.
Bolsonaro é um presidente, contudo,
muito inteligente. Sabe fazer o discurso que muitos querem ouvir, que promete
combater os sintomas que todos queremos curar logo, embora o faça apelando para
radicalismos, com narrativas potencialmente fascistas. O símbolo de seu governo
tem sido os dedos em forma de arma. Mas o gesto é apenas uma expressão do que
não cansamos de ver em sua boca: um discurso de ódio. Um dos recentes episódios
acontecidos ao Bolsonaro foi ser esfaqueado. Não é karma, não é para dizer que
“aqui se faz, aqui se paga”, que ele “está colhendo o que plantou”, pois
sabemos que muitas pessoas sofrem todo tipo de violência sem terem culpa, sendo
pobres vítimas; são gente inocente morrendo por causa da violência estrutural e
social.
Mas não dá para negar algo que Jesus
também sabia: a violência, que a gente pode estimular, cria cadeia, faz
ciranda, roda-roda-roda e, uma hora, às vítimas ou aos culpados, pode nos
acertar.