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sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Bolsonaro, ou: Quem lança mão da espada, pela espada perecerá (Mt 26, 52)



A trama estava armada contra Jesus. No meio do complô estavam a aristocracia laical e religiosa e o colaborador indispensável para a prisão de Jesus:  o traidor, Judas. A ação da tropa deve ter surpreendido a todos; da parte dos discípulos houve uma pequena tentativa de resistência que culminou no decepamento da orelha de um soldado romano por um golpe de espada.

A tradição é unânime em recuperar esse dado e João é o único evangelho que diz que o discípulo que procurou defender Jesus foi Pedro. Mas Jesus claramente ordena que o discípulo, seja ele quem for, guarde a espada. Por que Jesus impede a legítima defesa?

Por que a trama narrativa precisa continuar, diriam uns. E estão certos. Os Evangelhos são fundamentalmente narrativas querigmáticas (anúncio do mistério pascal de Cristo) que desenrolam nas palavras e gestos de Jesus o que foi sua vida e como ela se desdobrou para chegar ao suplício da cruz e à ressurreição. Mas quero discordar de antemão de uma leitura que imagine que os Evangelhos conduzam para o mistério pascal e que só lá, nos capítulos sobre a morte e a ressurreição, é que finalmente a vida de Jesus faça sentido.

Se os capítulos sobre a morte e a ressurreição são o clímax da trama, isso não justifica descartar toda a trama em nome do clímax. Tudo o que se diz antes já revela quem Jesus de fato é. Tudo o que Jesus realiza antes de sua morte e ressurreição já nos salva (isso é o que entendemos por encarnação, se quisermos falar dela com decência teológica). Logo, a frase de Jesus sobre guardar a espada não está só em função de uma trama que precisa desenvolver-se, mas tem sentido em si mesma.

Porque Jesus tinha que morrer, é outra possível resposta. Como um vivente, por certo, pois tudo que está vivo, um dia, morre. Mas ele não tinha que morrer de morte matada. Porque é isto a cruz: um assassinato. Uma trama macabra para silenciar um homem que estava perturbando a ordem religiosa e social de sua época.

A cruz era uma condenação horrenda, e Jesus morre como um maldito entre ladrões. Nada justifica dizer que é da vontade de Deus que seu filho amado morra, nem tampouco dizer que Deus precisa do sangue do próprio filho para nos salvar. Essa soteriologia vicária nos rendeu menos amor que medo por essa imagem de Deus, que mais parece uma imagem vampiresca.

Qualquer frase bíblica que permita essa interpretação errônea e horripilante não passa de má interpretação, pois ou está em função de um dado teológico relevante (Deus não faz nada para evitar a morte do filho) ou em função de uma teologia propiciatória (tipicamente paulina). Ou seja: à primeira leitura, confusões podem se dar mesmo e, embora esses temas exigissem outros artigos, o que convém ressaltar é: Deus não precisa da morte do filho, mas a recebe. Jesus, então, não manda guardar a espada, porque queira morrer ou porque esteja seguindo algum script que ordena a sua morte; ele não é nenhuma espécie de masoquista ansioso por sofrer.

Jesus via sua morte como entrega, dirão outros. De novo, o Evangelho de João é o que mais ressalta esta característica: Jesus é quem dá a sua vida, ninguém a tira. Mas, em todos os outros Evangelhos, é possível perceber que Jesus não volta atrás em sua palavra. É fiel àquele anúncio que norteou a sua vida. Jesus crê que é possível que o matem, mas não serão capazes de arrancar o sentido que encheu sua existência: e isso ele oferece (porque o tem) – vida em abundância. Sua confiança naquele que chamava de Pai e seu Reinado, que acontecia por meio do amor ao próximo que ele ensinava e vivia, eram mais fortes do que o medo da morte. Deveria ele, por medo da morte, desmentir tudo o que havia dito e fugir dos compromissos e das consequências que sua vida havia provocado? Ele poderia tê-lo feito, mas que tipo de existência ele viveria depois de negar o segredo de seu próprio espírito? Então, se Jesus pede para guardar a espada, é porque ele precisa ser coerente com seu anúncio de amor e de paz, apesar da violência que o cerca.

E se quisermos buscar nas fontes bíblicas textos que desenvolvam o que Jesus propõe, poderíamos recuperar não poucas palavras: “evitai que ninguém retribua o mal com o mal, mas encorajai que todos sejam bondosos uns com os outros” (1 Ts, 5, 15); “não retribuindo mal com mal, tampouco ofensa com ofensa; ao contrário, abençoai; porquanto, foi justamente para esse propósito que fostes convocados, a fim de também receberdes bênção como herança” (1Pd 3,9). E se quisermos ficar apenas com as palavras de Jesus, veremos que ele é bastante contundente: “Vocês ouviram o que foi dito aos seus antepassados: ‘não matarás’, e ‘quem matar estará sujeito a julgamento’. Mas eu lhes digo que qualquer um que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento” (Mt 5,21ss). Ou ainda mais: “Ouvistes o que foi dito: olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica; larga-lhe também a capa…” (Mt 5,38ss).

Sendo assim, no “guarda a espada” de Jesus ecoa todo um projeto de superação da violência e de investimento na paz e no amor. Aliás, não faltaram discípulos decepcionados com Jesus, inclusive Pedro, porque o projeto do Senhor não era o de vencer pela força; não era o de implantar seu reinado à fórceps, ou de obrigá-lo boca abaixo pela força de seus anjos; não era exigir a conversão e a mudança fazendo cair uma tempestade do céu. Sua mensagem era uma proposta de liberdade e fraternidade que admite ser rejeitada.

É evidente que sendo fiel ao seu projeto, não o negando e não voltando atrás nas consequências de sua mensagem, Jesus não está proibindo a legítima defesa. É um instinto natural e uma atitude de bom senso defender a própria vida e a daqueles que amamos quando essas se veem ameaçadas. Isso está longe, entretanto, da violência pela violência, ou da desmesura em que o ódio nos coloca. A vingança, o ódio, a frustração de nossos desejos, os medos, as angústias mal resolvidas podem nos lançar na violência com muita facilidade. Legítima defesa é outra coisa.

Aí entra o Bolsonaro e sua pauta polêmica do armamento da população. O descrédito com a justiça no nosso país, com a segurança e com a educação, estão nos fazendo trocar aquilo que é fundamental pelo incerto e perverso. Permitir o porte de arma não resolve os problemas mais cruciais. Alguns poderiam argumentar que resolve o problema do ataque dos bandidos, instaurando neles o medo e o receio de praticarem a violência já que as vítimas potenciais agora poderiam se defender.

O medo, entretanto, não impede nenhum ato de violência, muito pelo contrário, o incita. O problema da violência não será resolvido combatendo seus efeitos (que é quando o bandido chega a arma na cabeça de alguém, p.ex.). Isso, porque as causas continuarão em funcionamento. Do mesmo modo, apenas prender os bandidos, sem rever o sistema penitenciário é algo que já comprovamos que não funciona. Também não funciona armar a população: ou vamos eliminar bandido produzindo assassinos? Corre-se o sério risco de não se olhar, assim, para as causas mais profundas dos problemas, propondo resolver as questões não em sua raiz, mas de modo superficial.

O mais fundamental é gerar educação, promover justiça, cuidar da saúde pública. Essas pautas mais concretas não aparecem nas discussões em torno do presidente Jair Bolsonaro. Em contrapartida, suas falas estão permeadas de preconceitos em relação à mulher, aos homossexuais, aos quilombolas, aos sem-teto, aos sem-terra, aos usuários de drogas, aos pobres em geral.

A desconfiança do presidente Jair Bolsonaro aos direitos humanos é aplaudida por muitos. É possível compreender que a população esteja completamente desacreditada das estruturas que deveriam garantir os direitos, mas negar os direitos humanos, isso já é demais, é retroceder muito. Para fazer os direitos valerem, o caminho não é desacreditá-los, mas promover uma transformação profunda das instituições que comece por ouvir a população. Isso, sem deixar de mencionar a tão necessária reforma política, sem a qual não pode haver uma transformação social honesta.

Armar a população não é solução para nada, mas pode produzir efeitos contrários drásticos. Num país cujas taxas de feminicídio são altas, onde os crimes de homofobia e transfobia só crescem, em que os crimes passionais são cada vez mais comuns, em que a violência por causa de discussões triviais é banalizada, o porte de armas de fogo só pode piorar a situação. Lembrem-se que o medo da ameaça não abaixa a adrenalina, só a aumenta…Depois, seria bom perguntar quem lucra com o armamento da população; a indústria armamentista certamente fará a festa. Em contrapartida, o mais acertado é proteger melhor as fronteiras para evitar o tráfico de armas, endurecer mais a compra e venda das mesmas e se colocar para solucionar na raiz os problemas mais profundos de nossa sociedade, dentre os quais estão a falta de justiça, o profundo abismo entre poucos ricos e uma imensidão de empobrecidos, que é uma das raízes da violência.

Alguns poderiam argumentar que Bolsonaro é boa opção porque é contra o comunismo, a cartilha gay, a favor da família nuclear, ou contra o aborto. Que sua política de armamento é só um erro em meio aos acertos. Podemos apresentar algumas intuições em relação a essas pautas.

1.          Ganhou relevância dizer que tudo aquilo que toca as causas sociais, o direito de todos, o desmonte da meritocracia a favor da distribuição de oportunidades seja petismo, lulismo, comunismo, socialismo. Há muitas controvérsias sobre o uso das palavras socialismo e comunismo. Ao citá-las, nem todo mundo entende a mesma coisa, mas grande parte da população brasileira as entende como uma grande ameaça ao país, como se aqui fosse instaurar-se um governo como o de Maduro ou Chávez. Sabemos que o socialismo real foi uma catástrofe, mas o socialismo utópico e o real são a mesma coisa? Citam Marx, mas o próprio socialismo marxista evoluiu e não fala mais de luta de classes, ao menos não como antes.

Enfim, as categorias “comunismo”, “socialismo” e até mesmo “petismo”, “esquerdismo” se tornaram omniabrangentes: são palavras em que cabe tudo, estão superinfladas e, talvez por isso, não digam mais nada de sério. Problema sério é o capitalismo também. Mas desse ninguém fala. O direito à propriedade privada é um ganho, mas esse sistema produz ainda hoje injustiças gritantes, camadas de pobres cada vez mais miseráveis, fome, mais e mais desempregados, uma globalização assimétrica. Ora, sistemas econômicos são problemáticos, não devem ser idolatrados, têm de ser constantemente revistos. Mas o problema mais grave ainda não está posto.

O problema mais grave é o fascismo: a tendência ao autoritarismo, nacionalismo fechado, desprezo pelos direitos humanos, supremacia militar, sexismo desenfreado, controle das mídias de massa, obsessão com segurança nacional, nepotismo desenfreado, desprezo pelas artes e por intelectuais, poder de corporações em alta, poder de trabalhadores suprimido. Um discurso de ódio (ou radical) em que se vê potencialmente tudo isso, é assustador.

2.          A escola é uma das instituições brasileiras que precisa de socorro. Mas uma educação em que não se possa ler os clássicos nem sequer discuti-los não promoverá um ensino consistente. Também uma educação que não possa falar de sexualidade, fica engessada e embaraçada em preconceitos e tabus. O moralismo crescente, a dificuldade de aceitar o diferente e de compreender as diferenças nascem justamente de uma educação enquadrada. A sexualidade é uma das dimensões humanas mais ricas, é amplamente experimentada durante a vida, tendo em vista que não se pode reduzi-la ao sexo. O lugar de seu aprendizado é a família. Mas é também a escola, a Igreja, porque não há como falar do humano ignorando suas constituições mais elementares, e a sexualidade certamente é uma delas.

A Igreja não raras vezes toca neste assunto, procura orientar os seus adeptos, apresenta suas normativas, não é mesmo? Por que a escola não poderia falar sobre sexualidade e sexo? Falar sobre sexualidade não cria pervertidos. Nem tampouco falar sobre as diferenças sexuais. A própria experiência falsifica essa crença. Vejamos a ambiguidade que há na compreensão do papel da educação: para esses grupos radicais, ela não é capaz de salvar as pessoas do mundo do crime, das drogas e do banditismo (daí que bandido bom é bandido morto), mas é capaz de produzir gays e perversos sexuais, como se essas orientações fossem efeitos de doutrinação (e assim pudessem ser desdoutrinadas). Além disso, Bolsonaro apontou uma cartilha que, segundo ele, era adotada pelo MEC.

O livro nunca foi adotado pelo MEC, segundo o próprio ministério da educação e a própria autora. A crítica sobre o que é ideologia de gênero, por sua vez, passa por um desentendimento radical sobre o que significa propriamente gênero, tipificação de gênero, orientação sexual e afins. Quando nem sequer as terminologias e conceitos são dominados e entendidos, a que tipo de críticas estamos assistindo, senão a críticas também ideológicas? Mais uma controvérsia, enfim: ao falar tanto contra a sexualidade, o presidenciável põe em relevo sua obsessão pelo assunto. Todo excesso pode indicar uma falta. Do que será que Bolsonaro realmente está se queixando?

3.          A família nuclear é uma invenção burguesa. Ao dizer que família é apenas aquela formada por pai, mãe e filhos, nega-se todo um espectro de possibilidades familiares. Uma série de pessoas que defendem esse modelo familiar fazem parte de famílias recompostas ou monoparentais. Lembremo-nos que Jesus vem de uma família em que seu pai é adotivo, se quisermos ser fieis à tradição. Agora, se o problema for assumir que há famílias homoparentais, sugerimos lembrar que os homossexuais querem seus direitos civis garantidos e esses não lhes podem ser negados já que são cidadãos como quaisquer outros. O Estado é laico e as misturas entre religião e estado até aqui vistas na história não redundaram em benefícios para nenhuma das duas. A religião deve permanecer crítica em relação à política e não se diluir nela.

4.          Não sou a favor do aborto, mas se quisemos ser pró-vida, devemos falar de uma vida que seja defendida de seu início até seu fim digno. Não é suficiente defender apenas o feto e depois defender pautas como o armamento, ou a morte de gays, ou fuzilar pessoas com opiniões contrárias. Depois, será preciso reconhecer que há casos muito específicos discutidos, inclusive, pela bioética e pela teologia em ambientes católicos, universidades, centros de teologia. Seja como for, a proibição não vai acabar com os abortos clandestinos. Que políticas públicas vão ser desenvolvidas para salvaguardar a saúde das mulheres? Além disso, a discussão mais uma vez fica enviesada, pois é justo defender o direito à vida de um nascituro, mas não se pode falar de sexualidade consciente.

Deve-se defender a vida, mas não se pode olhar para a figura do feminino com o devido respeito, reconhecendo-a em sua dignidade e seu importante papel, relegando-a aos papéis sociais que a cultura machista lhe incumbe. A discussão vai de novo para os efeitos, não para as causas.

Bolsonaro é um presidente, contudo, muito inteligente. Sabe fazer o discurso que muitos querem ouvir, que promete combater os sintomas que todos queremos curar logo, embora o faça apelando para radicalismos, com narrativas potencialmente fascistas. O símbolo de seu governo tem sido os dedos em forma de arma. Mas o gesto é apenas uma expressão do que não cansamos de ver em sua boca: um discurso de ódio. Um dos recentes episódios acontecidos ao Bolsonaro foi ser esfaqueado. Não é karma, não é para dizer que “aqui se faz, aqui se paga”, que ele “está colhendo o que plantou”, pois sabemos que muitas pessoas sofrem todo tipo de violência sem terem culpa, sendo pobres vítimas; são gente inocente morrendo por causa da violência estrutural e social.

Mas não dá para negar algo que Jesus também sabia: a violência, que a gente pode estimular, cria cadeia, faz ciranda, roda-roda-roda e, uma hora, às vítimas ou aos culpados, pode nos acertar.


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