Por Paulo Roberto Iotti Vecchiatti
Um dos grandes clássicos livros no
estudo sobre direitos humanos é o de Norberto Bobbio, chamado “A Era
dos Direitos”. Fruto de diversas conferências que o renomado autor fez ao
longo de décadas, a tese central, que dá origem ao título, é uma mudança
paradigmática na forma como o mundo lida com as relações entre governantes e governados.
Passou-se de uma era dos deveres para uma era dos
direitos, no sentido de que, antes, os códigos morais e jurídicos focalizavam-se
exclusivamente nos deveres dos chamados “súditos” para
com o chamado “soberano” (o “príncipe”), enquanto,
a partir das Revoluções Liberais posteriores, inspiradas pelo Iluminismo,
passou-se a considerar que os cidadãos teriam,
primordialmente, direitos (“naturais”), anteriores ao Estado, que
este deveria respeitar.
Passou-se de uma concepção
orgânica de sociedade,
na qual os indivíduos são vistos como meros integrantes de um todo orgânico
superior (o Estado), donde não existiam “direitos individuais”, para
uma concepção individualista de sociedade, pela qual o
indivíduo antecede o Estado e tem direitos inalienáveis e imprescritíveis que
deveriam ser, por este, respeitados.
A Revolução Francesa é o grande marco dessa virada paradigmática
na História da humanidade (em termos ocidentais) A partir das lições de Kant,
Bobbio aponta a Revolução Francesa foi um marco histórico que consagrou uma tendência
moral da humanidade para a afirmação do direito de um povo a não
ser impedido por outras forças de se dar a Constituição civil que creia ser
boa, porque em harmonia com os direitos naturais dos indivíduos
singulares, que só deveriam obedecer leis que tivessem se reunido para
elaborar[1].
Ou seja, de uma lógica de deveres de súditos para
com um “soberano” (um rei absolutista), passou-se
gradativamente a uma lógica de direitos de cidadãos em
face do Estado, cujo “soberano” é não mais um rei, mas o próprio povo, embora
por seus representantes legitimamente eleitos em eleições livres, para focar na
lógica de democracia representativa da contemporaneidade.
Invoco a lição de Bobbio para o atual
momento político brasileiro para denunciar o que vejo como graves indícios ou
signos de perigosos tempos que parecem se avizinhar em nosso país. Obviamente,
isso é uma interpretação a partir de determinados fatos
(indícios) para, por ilação, apontar-se os riscos que se avizinham.
Não se trata de certeza matemática, mas, voltando a Bobbio a partir de Kant, de
uma história profética que pressagia o que pode vir a ocorrer
(daí ser uma hipótese, não uma certeza incontestável), mas a partir de fatos
que efetivamente ocorreram (daí ser uma hipótese que deve ser levada a sério).
Bobbio e Kant viram na Revolução
Francesa um “evento extraordinário”, caracterizador de forte indício ou signo,
de uma mudança na forma de encarar as relações entre governantes e governados,
saindo de uma “era dos deveres” para uma “era dos direitos”. A hipótese
aqui ventilada é que o lema de Bolsonaro, de “Pátria acima
de tudo, Deus acima de todos” (sic), bem como certas declarações do
candidato, de seu vice e de parte de seus eleitores tornam verossímil a iminência
de tempos de autoritarismo e desrespeito aos direitos humanos.
Primeiro indício: lema consagrador de uma concepção organicista de
sociedade. Pelo menos da forma como apresentado, sem ressalvas, o lema “Pátria acima de tudo” denota
que o foco será na coletividade e não no indivíduo. O que fazer em caso de
conflito entre direitos individuais e o “interesse nacional”, cláusula extremamente
vaga usada, no passado, para justificar opressões e totalitarismos diversos?
Significaria isso que o indivíduo será visto como mera “parte do todo social”
e, por isso, sua individualidade só seria respeitada caso condizente com
valores dominantes, como prega o comunitarismo?
O que dizer, então, do lema “Deus acima de todos”, que
denota uma concepção teocrática de sociedade, absolutamente contrária à ideia
de Estado Laico? Cabe lembrar que Estado Laico é aquele que é separado de
Igrejas, permite a mais ampla liberdade de crenças e descrença e não permite
que fundamentações religiosas determinem os rumos políticos e jurídicos do
país. É o que consagra o art. 19, II, da Constituição Federal, que esse lema
bolsonárico parece desprezar.
Lembre-se, ainda, que no passado,
crenças teocráticas justificaram a perseguição daqueles(as) que não adotavam a
religião oficial do Estado, como um singelo estudo histórico das guerras
religiosas e da demanda pelo surgimento dos direitos fundamentais à liberdade
de consciência e crença demonstra claramente. O famoso livro de Voltaire,
“Tratado sobre a Tolerância”, muito citado (por seu título) mas pouco lido, foi
escrito precisamente no contexto de guerras religiosas, denunciando “fanáticos”
intolerantes que não tinham tolerância com quem tivesse visão religiosa
distinta.
É verdade que o plano de governo de
Bolsonaro fala em “Liberdade
para as pessoas, individualmente, poderem fazer suas escolhas afetivas,
políticas, econômicas ou espirituais” (p. 04). Oremos para que
essa promessa seja cumprida, caso seja eleito, mas, como visto acima, isso é
completamente antagônico com o lema geral da campanha que prega, que não é
sequer explicado por seu plano de governo, a despeito de ser difundido como uma
espécie de “princípio reitor” de sua candidatura…Inclusive porque o candidato
já demonstrou não estar plenamente ciente de seu próprio plano de governo, já
que, em rede social (Twitter), ironizou, como “inacreditável”, jornalista que
disse que em seu programa de governo consta instituição de “renda mínima” para
toda população brasileira, proposta esta que, efetivamente, consta de seu plano
de governo (p. 63), tal como registrado no TSE[2]…
Outra perplexidade, decorrente de
contradição filosófica de ideias pregadas, decorre da chapa bolsonárica adotar
como discurso o liberalismo
econômico. Ora, o liberalismo é
uma doutrina individualista por excelência, que é
absolutamente incompatível com lemas organicistas e teocráticos como este de “Pátria
acima de tudo, Deus acima de todos” (sic). O liberalismo prega que o
Estado não deve intervir nas relações entre os indivíduos, exceto para garantia
da segurança pública e do cumprimento dos contratos.
Consagra a lógica do “Estado Mínimo”,
presumindo uma “necessária” relação hierárquica (vertical) entre Estado e
cidadãos, e uma relação de igualdade (horizontal) de cidadãos entre si, razão
pela qual presume que os contratos firmados pelos cidadãos seriam “acordos
firmados por plena autonomia da vontade” que, como tais, deveriam valer, como
se lei fossem (daí a máxima de que “o contrato faz lei entre as partes” – pacta
sunt servanda).
Embora a História já tenha provado que
as relações entre particulares não são necessariamente horizontais, pela
pobreza de uns e riqueza de outros que gera explorações daqueles por estes
(fato que gerou a criação do Direito do Trabalho, como protetivo de
trabalhadores, e do próprio Direito do Consumidor),não há nada mais incompatível
com a demonização que o eleitorado de Bolsonaro e o próprio candidato fazem (a
partir de estereótipos) do “comunismo” do que esse lema organicista e
teocrático de sociedade.
Segundo indício: declarações de Bolsonaro e de seu
vice, general Mourão, e de parte de seus eleitores, senão vejamos. Bolsonaro:
1. Declarou que “o erro da Ditadura foi
torturar e não matar” (sic)[3],
tendo antes disso se declarado favorável à tortura em entrevista (de 1999) em
que também disse que fecharia o Congresso Nacional, por entender que ele “não
funciona”, bem como que “não se vai mudar nada a partir do voto popular, mas
infelizmente apenas partindo para uma guerra civil, e fazendo o trabalho que o
regime [a Ditadura Militar] ainda não fez, matando uns trinta mil, começando
pelo FHC” (sic), o então Presidente Fernando Henrique Cardoso[4];
2. Realizou homenagem ao coronel Brilhante
Ustra, notório torturador da Ditadura Militar, em seu voto em favor do
“impeachment” da Presidente Dilma Rousseff, sendo que é notório que ela foi
torturada por Ustra na Ditadura, algo que tanto ele sabia que afirmou que Ustra
seria “o pavor de Dilma Rousseff”[5] (qualquer
órgão legislativo minimamente sério teria cassado o mandato parlamentar de
alguém que fez tamanha declaração de lesa-humanidade, ainda mais pela
provocação feita a pessoa torturada por dito cidadão);
3. Pouco antes do absurdo atentado que
sofreu, em 2018, proferiu a leviana e irresponsável fala sobre “fuzilar
a petralhada aqui do Acre, hein? Vamos botar esses picaretas para correr do
Acre”[6] (embora
seja certo que ele vá alegar que se tratou de mera “metáfora” ou algo do
gênero, usada em sentido eleitoral, não consta ter feito nenhuma ressalva no
momento, algo flagrantemente irresponsável, por imprudente, flagrantemente apto
a gerar violência contra pessoas petistas, ainda mais no notoriamente tenso
período de conflitos sociais que vivemos);
4. Falou que pretende criar um “campo de
refugiados”, em Roraima, no contexto da crise migratória de pessoas vindas da
Venezuela[7] (“campo
de…” lembra o que mesmo?);
5. Disse, mais de uma vez, que não
aceitará qualquer outro resultado das eleições de 2018 que não a sua vitória[8],
pelo fato de sentir apoio popular em todos os lugares que recebeu, insinuando
fraude eleitoral em qualquer resultado contrário, nas suas ilações de pura
teoria de conspiração, absolutamente desprovida de provas, sobre supostos
“problemas” e “fraudes” nas urnas eletrônicas (ou seja, para ele, a eleição
seria um mero rito formal de sua aclamação, algo manifestamente
antidemocrático);
6. Referiu-se ao peso de pessoas
quilombolas pelo objetificante termo “arroba”, dizendo que acha que determinado
“afrodescendente” de lá “nem para procriador ele serve mais”[9](não
obstante absolvido pelo STF em julgamento sobre o tema[10],
por força de sua imunidade parlamentar e, absurdamente, pela cláusula da
“liberdade de expressão”, por absurda negação da maioria apertada de 3×2 sobre
um suposto caráter não-racista da declaração, é inconteste que as declarações
foram de cunho racista, consoante minha análise e a de diversas pessoas, de
sorte a ser absurda a afirmação do STF de que essas falas se configurariam como
“liberdade de expressão”, que não permite discursos de ódio tais; sendo que,
ainda que estivesse dando palestra expondo sua opinião política contrária à
demarcação de terras quilombolas, um direito seu, Bolsonaro não tinha o direito
de se utilizar de termos tão injuriosos às pessoas da comunidade quilombola em
questão, consoante ofício que enviei, por entidades do Movimento LGBTI+, pouco
antes do voto-desempate[11],
de sorte a que essa lamentável decisão, reconheça ou não, acaba reformando o
racismo no Brasil[12]);
7. Já declarou que se visse um casal de
homens se beijando na rua, os agrediria(“Não vou combater nem discriminar,
mas, se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”)[13],
que um filho se torna gay por “falta de porrada”, além de que “Seria
incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui:
prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por
aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo” e que “se um casal
homossexual vier morar do meu lado, isso vai desvalorizar a minha casa! Se eles
andarem de mão dada e derem beijinho, desvaloriza”[14],
já tendo explicitamente se declarado, em 2013,“homofóbico com muito orgulho” em
vídeo[15] (embora,
atualmente, isto absurdamente negue);
8. foi elogiado por ex-integrante da
KuKluxKlan, entidade neonazista de extrema-direita dos EUA, que disse que “ele
[Bolsonaro] soa como nós”[16] –
sinal mais claro do que esse dificilmente haverá (sendo um escárnio desafiador
da inteligência chamar a KuKluxKlan e o próprio nazismo de movimentos de
“esquerda” – permitindo-me a ironia, “recomendo” que quem acredite nisso que
diga pessoalmente a neonazista de dentro e fora da KKK de “esquerdistas” para
ver o que lhes acontece);
9. o lema “Pátria acima de tudo”
(na verdade, “Alemanha acima de tudo”) foi utilizado no nazismo[17],
algo que, ao que me consta, não foi sequer problematizado por Bolsonaro, que
deveria, no mínimo, ter se esforçado para diferenciar seu lema do nazista (e
chamar o nazismo de movimento de “esquerda” pelo nome “nacional socialismo”, em
ignorância histórica completa sobre os diferentes significados deste e do
marxismo, é tão absurdo como considerar a Coreia do Norte uma democracia
genuína por se chamar “República Popular Democrática da Coreia”…).
Esclareça-se, ainda, que, embora o termo “Alemanha acima de tudo” faça parte do
hino alemão,“Durante o período nazista, a segunda e a terceira estrofes [do
hino] foram suprimidas e apenas a primeira era cantada, o que criou a
associação entre a expressão “Deutschlandüberalles” [Alemanha acima de tudo] e
o nazismo”[18].
Uma
associação que, aliás, foi noticiado que o Plenário do TSE autorizou[19].
Trata-se de algo que, no mínimo por boa-fé objetiva (padrão de conduta
imponível à pessoa mediana), Bolsonaro e seu staff têm
obrigação de saber e, assim, tinham a obrigação de explicar, precisamente para
afastar o temor que instintivamente surge a quem sabe da utilização desse lema
pelo nazismo, algo que evidentemente seria levantado em uma
campanha eleitoral – na verdade, deveria não usar um tal lema precisamente por
isso, mas, já que o usou, pelo menos, deveria explicar a diferença de seu lema
com aquele usado no nazismo, algo que não me consta tenha sido feito…
Por sua vez, seu vice, general Mourão, afirmou, em
plena campanha eleitoral de 2018:
1. falou de “possibilidade” de um “autogolpe”
militar[20],
por parte do Presidente da República, no contexto de que o Presidente, como
Chefe das Forças Armadas, poderia convocar os militares para auxiliá-lo, caso o
país atingisse determinado grau de “anomia”, de “anarquia generalizada”[21],
mas, convenientemente, não explicando que tipo de situação hipotética poderia
isto gerar, quando confrontado por jornalistas da evidente
inconstitucionalidade dessa questão;
2. aventou a
ideia de “Constituição Sem Constituinte”[22],
no sentido de que uma Constituição “não precisaria” ser elaborada por
representantes do povo, mas por uma mera “comissão de notáveis”, a ser
posteriormente objeto de referendo popular[23] (algo
que ignora a obviedade de que a discussão apenas do todo e não de artigo por
artigo evidentemente não é uma forma democrática de se tratar da questão);
3. criticou a
ideia do 13º salário, como uma invenção (“jabuticaba”) brasileira (embora,
depois, tenha recuado minimamente, mas continuando a criticá-lo)[24],
lembrando que, ao falar em “Constituição sem Constituinte” (supra), defendeu
que uma Constituição não deveria ser analítica como a brasileira, mas apenas
ter “princípios gerais”, como a estadunidense – o que deixa claro que não deseja
que uma Constituição contenha direitos sociais, que não estão na Constituição
Federal dos EUA…
4. falou de
“branqueamento da raça”[25] ao
se referir à beleza de seu neto (intencional ou não, foi fala de extremo teor
racista, como é evidente, que denota a inferioridade das pessoas negras, pois,
do contrário, não seria logicamente possível ele falar em “branqueamento de
raça” como “fundamento” para a beleza de seu neto…) – lembre-se, ainda, sua
fala também racista (fosse ou não sua intenção), que ligou a “indolência”
brasileira aos índios e a “malandragem” aos africanos, logo, aos negros (“Temos
uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. E eu sou
indígena, meu pai era amazonense. E a malandragem é oriunda do africano. Então
esse é o nosso cadinho cultural”– e o fato de se declarar descendente de
índios não muda o caráter racista da declaração, no mínimo pelo fenômeno dopreconceito
internalizado, a pessoa que acredita no preconceito social contra si ou, no
caso, sua origem)[26];
5. disse que
famílias compostas só por “mãe e avó”seriam fábricas de “desajustados”[27] (deixando
claro o machismo patriarcal que assola suas ideologias pessoas – esteja ou não
consciente disso).
Sobre parte do eleitorado de Bolsonaro, temos tido
absurdas manifestações de deplorável intolerância social que se sentem
“legitimadas” pela candidatura de Bolsonaro, a saber:
1. o nefasto grito “oh bicharada,
toma cuidado, Bolsonaro vai matar viado”(sic), em canto entoado por parte
da torcida do Palmeiras[28],
mas que foi cantado pela primeira vez por parte da torcida do Atlético Mineiro
(que falou em “cruzeirenses” ao invés de bicharada – gerando punição, embora
pífia, do clube, pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva[29]),
e, depois, em metrô de SP[30] (aqui,
sim, com o termo “bicharada”) e em Goiás (com o termo “panetone”, em referência
à torcida do Vila Nova)[31];
2. um jogo foi criado no qual o personagem
de Bolsonaro precisa matar integrantes de minorias, como LGBTs, feministas,
negros e militantes de esquerda[32];
3. uma travesti foi assassinada aos gritos
de “Bolsonaro”[33],
o que deixa claríssimo o caráter político de tal crime, que claramente entende
que a transfobia seria “legitimada” pela eleição de Bolsonaro;
4. capoeirista negro foi assassinado em
discussão com eleitores de Bolsonaro, após declarar voto no PT (“O autor
confesso do crime, Paulo Sérgio Ferreira de Santana, de 36 anos, disse à
polícia que o assassinato teve motivação política. De acordo com a
declaração que deu às autoridades, Santana, que votou e defendeu o candidato de
extrema direita Jair Bolsonaro (PSL), discutia com o dono do local, que
votou em Fernando Haddad(PT), quando Moa uniu-se à conversa para também defender
o petista. O assassino, então, foi à casa, pegou uma peixeira e voltou ao bar
para atacar o capoeirista. A delegada Milena Calmon, responsável pelo caso,
descreveu Santana ao EL PAÍS como um homem ‘intolerante e agressivo’”[34].Grifos
nossos);
5. relatos de agressões por vítimas de
eleitores de Bolsonaro aumentaram nas redes sociais após o resultado do
primeiro turno de 2018[35],
já tendo sido constatado pela mídia o aumento da violência após o fim do
primeiro turno por parte de eleitores de Bolsonaro (“Um mapeamento feito
pelo pesquisador e jornalista, Haroldo Ceravolo, mostra mais de 50 casos de
violência cometidos desde o início de outubro por defensores do candidato à
presidência Jair Bolsonaro (PSL). O número aumenta a cada dia”)[36],o
que Bolsonaro disse “lamentar”, mas que não seria capaz de controlar (“Peço
ao pessoal que não pratique isso, mas eu não tenho controle sobre milhões e
milhões de pessoas que me apoiam”)[37]–
algo curioso para alguém que se diz apto a acabar com a criminalidade no país,
além de ter sido uma fala muito sutil para um problema tão grave; não tenho
notícia de sua propaganda eleitoral ou algo do gênero conclamar seus eleitores
a não fazê-lo…
Creio que esses exemplos sejam o
bastante para explicar meu ponto. Estamos vivendo uma fase, no Brasil,
em que pessoas intolerantes se sentem “legitimadas” pela candidatura de Jair
Bolsonaro e que, por isso, obtiveram coragem para externar sua intolerância,
mediante ofensas e mesmo agressões ou assassinatos. Da mesma forma que a
eleição de Donald Trump fez com que simpatizantes e integrantes da nefasta
KuKluxKlan se sentissem “legitimados” nos EUA (ex-líder, o mesmo que disse que
Bolsonaro se assemelha a tal organização, disse que Trump “empoderou” pessoas
de sua ideologia)[38],
a lamentável força da candidatura de Bolsonaro tem feito com que intolerantes
brasileiros se sintam “legitimados” por isso. O mínimo que
se espera e se pode exigir do citado candidato é que conclame seus eleitores a
não fazê-lo – e de forma enfática e constante, e não meramente tímida e pontual
como fez na entrevista supra citada.
Retomemos o tema do título deste
artigo: desde pelo menos o marco Revolução Francesa e sua Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, tivemos uma mudança da “era dos
deveres” para uma “era dos direitos” – o que não
significa “direitos sem deveres”, mas reconhecimento de direitos individuais
contra totalitarismos estatais, pois, obviamente, ninguém é contra que, além de
direitos, haja deveres de solidariedade social em prol do bem-comum, a ideia do “Estado
de Bem-Estar Social”, que consagra uma noção de “capitalismo
controlado”, com intervenção do Estado no domínio econômico para evitar a
opressão de particulares por outros particulares, tenta chegar a um meio-termo
entre capitalismo e socialismo nas suas versões mais puras, pela lógica do
“reformismo” socialdemocrata em contraposição à revolução socialista.
O individualista extremado também é
problemático, o indivíduo realmente vive em sociedade e deve ter a si
reconhecidos deveres de solidariedade social na busca do bem-comum, masconciliando-se
isso com o respeito a individualidades, sem totalitarismos morais,
religiosos ou em favor da “pátria” quaisquer. Daí a lógica do Estado de
Bem-Estar Social, que consagra o capitalismo como sistema econômico, mas
não permite que particulares explorem/oprimam outros particulares. A redação
dos arts. 3º e 170 da Constituição Federal é emblemática nesse sentido.
Continuando, referida mudança
paradigmática da Revolução Francesa teve sua consagração pela Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e diversas outras declarações de
direitos que lhe sucederam, com a internacionalização dos direitos humanos e a
ideia de que o indivíduo é sujeito de direitos não só como cidadão de um Estado
isolado, mas um sujeito de direitos do sistema internacional, que deve
protege-lo, atualmente por intermédio dos tribunais internacionais de Direitos
Humanos (como a Corte Interamericana, a Corte Europeia e o Tribunal Penal
Internacional, este visando punir crimes contra a humanidade).
Ademais, o lema bolsonárico de “Pátria
acima de tudo, Deus acima de todos”, denota uma concepção orgânica de
sociedade, que coloca o todo social acima do indivíduo (este como uma mera peça/engrenagem do
sistema social e, por isso, a ele subordinado), e, ainda por cima, uma
concepção teocrática absolutamente contrária à laicidade do Estado –
laicidade esta que é pressuposto do pluralismo social e da própria liberdade
religiosa, como a História bem demonstra.
Esse lema é absolutamente contrário ao
próprio liberalismo, especialmente à sua versão extrema,
do laissezfaire, que Bolsonaro e seu economista, Paulo Guedes,
aparentemente pregam para a economia, embora aparentemente, pelo menos por
força de tal lema, não para os costumes (a contraditória lógica de “liberal na
economia, mas conservador nos costumes”, o que significa, na prática, “liberal
na economia, mas não-liberal nos costumes”, ou melhor, uma ideologia a favor do
“liberalismo econômico”, mas não do “liberalismo político”, ou ainda, a favor
do “Estado Mínimo” na economia, mas do “Estado Intervencionista” nos costumes –
em suma, uma clara contradição filosófica, de liberalismo apenas naquilo que
convém…). Um lema, portanto, contraditório à demonização que essa
chapa e seu eleitorado fazem do “comunismo”(sendo que é um escárnio
dizer que os governos petistas teriam sido “comunistas”, já que foram
neoliberais na macroeconomia, embora tenham tido importantes ações em favor da
redistribuição de renda, como demanda um Estado de Bem-Estar Social).
Por fim, as manifestações de
Bolsonaro, seu vice e de parte de seu eleitorado, supra descritas, acendem um
sinal de grave alerta para a Democracia e os Direitos Humanos. Há uma cegueira deliberada para as consequências
lógicas das falas bolsonáricas e de seu vice, relativizando-se tudo o que
dizem, pela lógica de “não quiseram dizer isso”, ou “as instituições irão
controla-los” etc. Por muito menos, teorias da conspiração afirmam com elevada
“certeza” que o PT levaria o Brasil à situação caótica da Venezuela, mesmo não
havendo absolutamente nada nos 13 anos de governos petistas que,
longinquamente, denote isso.
Na verdade, como bem disse Conrado
Hübner Mendes, o risco de “venezuelização do Brasil” vem da direita bolsonárica[39], razão pela qual termino o artigo com longa citação
desse belo texto deste renomado Professor:
A plataforma política de Bolsonaro
ignora absolutamente a conexão entre crescimento econômico de um lado e a
qualidade do estado de direito de outro. Para ficar no exemplo mais grotesco, o
candidato propõe, no país em que mais se mata com arma de fogo no mundo, a
liberação geral das armas e uma polícia que atira para matar como solução de
segurança pública.
Esse “voto racional” em Bolsonaro, ao
que parece, obedece a padrões de racionalidade que filósofos, juristas,
economistas e comentaristas internacionais desconhecem.
Contabilizemos as dezenas de alertas
vindos da imprensa internacional que atravessa o espectro político da direita à
esquerda: da Economist ao Zeit, do Le
Figaro ao Corrieredella Serra, de Financial Times à, pasmem, Fox
News, assustados com a recaída autoritária brasileira sob liderança, nas
suas palavras, de um personagem “neofascista” e “faxineiro racista”. Tampouco
carecemos de alertas vindos da imprensa brasileira.
Demétrio Magnoli, argumenta:
“A disputa não é entre dois extremistas simétricos. Derrotá-lo não é escolher o
PT, mas escolher a democracia”.
Roberto Pompeu de Toledo, avisa: “O outro lado é duro de engolir, mas estamos
diante de uma questão civilizacional”.
Arnaldo Jabor grita:
“Bolsonaro pode transformar o Brasil numa desgraça definitiva.” Samuel
Pessoa pondera: “Bolsonaro é o mal maior.” Não são
esquerdólatras nem lulófilos os que falam. O mercado parece
se dar conta do perigo dessa aposta.
No relato de Vinícius Torres
Freire sobre as últimas percepções de “gente graúda da finança”,
recentes críticas de Bolsonaro ao capital estrangeiro e às privatizações voltam
a evidenciar a “biruta ideológica, instável e temperamental”.
Na reportagem de Mauro Zafalon,
o próprio agronegócio está apreensivo com a inexperiência do candidato e o
despreparo de sua equipe, um “caminho certo para um potencial desastre no
campo”.
[…]
Rumo à Venezuela, pela direita. David Runciman, autor de Como a democracia
chega ao fim, conta que a política democrática é ávida por “fábulas com
moral”, exemplos positivos ou negativos “do possível destino que nos aguarda”.
As “fábulas edificantes” recomendam o caminho a ser seguido. As “fábulas de
advertência”, aquele a ser evitado. A Venezuela tem sido, pelo menos nos
últimos 15 anos, a grande “fábula de advertência contra brincar com o fogo do
populismo”, o símbolo mais temido da destruição política e econômica de um
país.
Eleitores de Bolsonaro acreditam que
caminhávamos nessa direção, pela esquerda. O equivocado apoio de governos
petistas a esse país, já rechaçado por Fernando Haddad, servia como evidência
suficiente para demonstrar essa hipótese, pouco importando as contra evidências
oferecidas pela vida institucional brasileira dos últimos 20 anos.
Nesse período, a coluna vertebral das
instituições democráticas manteve-se intacta mesmo quando um líder popular como
Lula tinha força para rompê-la. Ironicamente, esse eleitor tão confiante no seu
tirocínio político optou pelo mesmo destino. Desta vez pela direita, e numa via
expressa.
É a Venezuela que você teme? Jair
oferece o mapa e nos leva pelas mãos. Ser contra a venezuelização do
Brasil e votar em Bolsonaro é uma contradição performativa (aquele
ato que faz o contrário da intenção declarada).
Não é contradição indolor, pois afeta
uma vida e um país como nenhuma outra escolha nos últimos 30 anos. A
Venezuela não se converteu na grande fábula de advertência por ser “de
esquerda”, como se disseminou na cartilha da manipulação política. Chegou até
aqui porque o regime implodiu instituições democráticas. De novo,
estudiosos sem nenhum apreço pelo petismo podem nos ajudar.
Monica de Bolle explica: “A pessoa que, mais provavelmente,
transformará o Brasil na Venezuela é Bolsonaro.”
Maria Hermínia Tavares, reforça: “Se tem algo parecido ao chavismo, mas com
outro sinal, é essa ameaça do Bolsonaro.”
Steven Levitsky, autor do livro Como as democracias morrem,
enxerga em Bolsonaro um grande exemplo para o título de seu livro.
Para Francis Fukuyama,
autor do famoso livro O fim da história, Bolsonaro é mais um membro
dessa nova “Internacional Populista”, a extrema-direita sem apreço pela
democracia.
A violência política não está
precificada. O mercado não
faz juízos morais, apenas precifica. Orienta-se, em última análise, pelo que
faz a bolsa subir ou descer. Juízos morais “às favas”, como diria Gilmar
Mendes, maestro do antipetismo, esse veneno que ajudou a inocular e deixou
escorrer pelos dedos.
A conta financeira em favor de
Bolsonaro não fecha. Esse analista de risco que seduziu o mercado não foi
modesto na busca de controlar o futuro: aposta na aptidão de Paulo Guedes em
preencher o vácuo mental de Bolsonaro e ser soberano nas decisões técnicas de
governo; aposta na capacidade de um assessor tido como destemperado pelos seus
próprios pares, os economistas, em convencer um chefe alérgico a debate; aposta
que Guedes é bom gestor público sem nunca ter pisado no Estado, e que suas
propostas seriam politicamente exequíveis.
Estamos diante da exuberância
irracional, que não se importa com o desrespeito às regras nem com a erosão
da segurança jurídica. Juízos morais às favas, o PIbb [Produto Interno da
Brutalidade Brasileira] cobrará sua fatura nessa Venezuela bolsonaresca. Junto
com ele vai também o PIB.
A violência política não
está bem precificada, e a literatura econômica merece ser revisitada. “São
as instituições, estúpido!”(grifos
nossos).
Em suma, contra o potencialmente
autoritário tema bolsonárico, adoto aquele que tem se difundido entre pessoas
progressistas nas redes sociais:“Democracia acima de tudo, Direitos
Humanos acima de todos”. Pois, para concluir com Bobbio, na abertura de
seu clássico que inspira este artigo (substituo apenas a expressão “direitos do
homem” por “direitos humanos”, que foi o claro sentido de Bobbio, o que faço
porque, no passado, a expressão “direitos do homem” não abarcava as mulheres,
às quais era negada o direito de voto, de propriedade, de liberdade em
igualdade ao homem etc, ao contrário do que ocorre hoje):
O problema [dos direitos humanos] é
estreitamente ligado aos da democracia e da paz, aos quais dediquei a maior parte de meus escritos
políticos. O reconhecimento e a proteção dos direitos [humanos] está
na base das Constituições democráticas modernas. A paz, por
sua vez, é o pressuposto necessário para o reconhecimento e a efetiva proteção
dos direitos [humanos] em cada Estado e no sistema internacional. Ao mesmo
tempo, o processo de democratização do sistema internacional, que é o caminho
obrigatório para a busca do ideal da ‘paz perpétua’, no sentido kantiano da
expressão, não pode avançar sem uma gradativa ampliação do reconhecimento e da
proteção dos direitos [humanos], acima de cada Estado.
Direitos [humanos], democracia e paz
são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos
[humanos] reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não
existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a
sociedade dos cidadãos; e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são
reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não
tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais
deste ou daquele Estado, mas do mundo[40].
(grifos nossos)
Paulo Roberto Iotti Vecchiatti - é Mestre e Doutorando em Direito
Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE). Especialista
em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em
Direito Homoafetivo. Membro do GADvS – Grupo de Advogados pela
Diversidade Sexual e de Gênero. Advogado e Professor Universitário.
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Fonte:
http://www.justificando.com/2018/10/22/lema-de-bolsonaro-tambem-usado-no-nazismo-vai-contra-nossa-era-dos-direitos/