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Nas atuais eleições
presidenciais do Brasil, a candidatura de Jair Bolsonaro (PSL) é a que mais se associa às forças
autoritárias e nacionalistas no rol de presidenciáveis prováveis a ganhar o
pleito. O repertório do candidato
é velho conhecido e vai desde o atentado simbólico contra mulheres, negros e
homossexuais até discursos de nuances marcadamente fascistas, como o apoio a
torturadores militares e a incitação pública da violência e do ódio.
Entender o que
Bolsonaro representa é fácil; o difícil mesmo é compreender os que compactuam
com suas ideias. Como o discurso autoritário vem a se tornar uma opção viável
em eleições democráticas?
Refletir sobre o
apoio popular de Bolsonaro exige superar os ânimos momentâneos e ir além da
questão de um desvio de
caráter pessoal. Ainda que aspectos morais possam participar dessa síntese
que resulta no eleitor bolsonarista, eles sozinhos não são capazes de contar a
história toda. De antemão, cabe reafirmar que o eleitor de Bolsonaro é tão comum
quanto outro qualquer. Está em nossa família, no círculo de amizades, na turma
do trabalho, na fila da padaria, no pequeno comerciante ou no grande
empresário; acorda cedo, trabalha duro, paga suas contas, frequenta a igreja
aos domingos, brada contra a corrupção política, vê-se indignado com o retorno
ineficiente dos impostos; acredita ocupar-se do Brasil real, longe das
tratativas ininteligíveis da trama política de Brasília. Considera-se um
descrente da política que o conduziu até os dias atuais. É o típico cidadão
comum.
Filosoficamente
falando, nenhuma intelectual compreendeu tão bem a cooptação do cidadão comum
pelas dinâmicas do totalitarismo quanto Hannah Arendt (1906-1975). Mais que
pensadora dedicada ao mundo das ideias, a filósofa alemã de origem judaica
testemunhou o mal concreto do nazismo e fez do totalitarismo o objeto de sua
investigação em diversas obras. A resolução de Arendt sobre a “banalidade do
mal” se tornou a sua marca mais forte, sendo aqui também o guia dessa reflexão.
Arendt compreendeu
a banalidade do mal após analisar o julgamento de Adolf Eichmann, responsável
pela morte de milhares de judeus durante o regime nazista. No julgamento,
chamou a atenção da filósofa o fato de o responsável por tamanha atrocidade ter
sido um senhor comum de meia idade, pai de família e burocrata de carreira, cuja
motivação maior era corresponder com aquilo que a administração esperava dele,
sem traços de perversidade e razão maligna aparentes.
Não se trata de
admitir que o Brasil atual e a Alemanha totalitarista são a mesma coisa, o que
a mim pareceria, de fato, forçar a mão da análise. O elo entre a sociedade
totalitária descrita por Arendt e os nossos tempos não está na presença de
campos de concentração ou na perseguição oficial a judeus, mas na degradação da
empatia social e na naturalização da violência. A banalização do mal ganha
nuances novas e se torna perceptível em praça pública quando discursos de ódio
são aplaudidos inofensivamente por milhares de quaisquer uns.
Bolsonaro já
afirmou publicamente que não entraria num avião pilotado por cotistas e nem se
submeteria a um procedimento cirúrgico realizado por médico egresso de
políticas afirmativas; sugeriu o fuzilamento do ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso em rede aberta e rendeu homenagem a torturador durante voto pelo
impeachment da presidente Dilma
Rousseff no Congresso nacional;
insultou negros quilombolas em evento político; tornou-se réu por apologia ao
estupro de mulheres, além de uma série de insinuações que relacionam a
homossexualidade a desvios comportamentais a serem combatidos. Isso sem falar
em seu parceiro de chapa, Hamilton Mourão (PRTB), que engrossa
consideravelmente o caldo do autoritarismo, do preconceito e da misoginia.
Estes não são
exemplos excepcionais, mas uma constante do bolsonarismo que passa incólume e
sem estranheza ao crivo de seu eleitorado. Se ideias que atentam contra a
diversidade e a dignidade humana são tão irrazoáveis e extremadas em pleno
século XXI, como o discurso de Bolsonaro soa trivial ao ouvido de seus
apoiadores? Sob o pretexto de uma pretensa liberdade de expressão, estão aí
propagados a castração de nordestinos, o linchamento de marginalizados, a
apologia ao estupro, propagação da violência de gênero contra mulheres, a
expulsão de cubanos, a violência contra homossexuais, entre outros. Hoje em dia
o mal é banalizado à velocidade de um compartilhamento nas redes sociais.
Na sua famosa
expressão, Arendt buscou demonstrar que a banalidade do mal carrega essa
potencialidade mesma de florescer em sociedades cuja capacidade de refletir e
estabelecer juízos sofre certo grau de deterioração. Segundo a filósofa, essa
diluição da atividade de refletir e de estabelecer limites éticos entre o que é
bom e o que é mal assume um efeito prático evidente no cotidiano de sujeitos
medíocres. “Estará entre os atributos da atividade do pensar, em sua natureza
intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos
detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do
não-exercício do pensar?”. Afinal, até mesmo as atrocidades cometidas em nome
do nazismo contaram com o respaldo popular à figura de seu líder supremo, e, no
entanto, nem por isso parece ser plausível o argumento de que o povo alemão
fora acometido de uma maldade
eminentemente genuína.
A ascensão de
Bolsonaro dá-se em momento de crise política e econômica, de retrocesso nos
direitos sociais, piora geral na qualidade de vida, de polarização ideológica e
de um profundo questionamento das instituições públicas. O cenário crítico dos
últimos anos agiu favoravelmente para o ganho de forças de setores radicais que
até então encontravam-se amortizados. Esse panorama não é restrito ao Brasil,
mas fruto de uma tendência global em que persistem crise migratória, a
desintegração europeia, o fortalecimento de lideranças iliberais e de movimentos
nacionalistas mundo afora.
Sobre o fenômeno
Bolsonaro, há duas ponderações a serem feitas, uma de forma e outra de conteúdo.
A forma simplista com que trata
pautas importantes de economia, educação, saúde e segurança é um elemento de
proximidade entre o candidato e o seu eleitor. Bolsonaro encontra imediata
repercussão naquela parcela da população que se identifica com formas
simplificadoras e universalizantes para problemas complexos da atividade
governamental. Por outro lado, o
conteúdo autoritário de suas proposições no tocante às questões sociais
encontra respaldo naquela parcela que se identifica no campo do ceticismo e da
incredulidade diante das saídas pouco efetivas que a democracia tem imposto. A
junção dos aspectos de forma e conteúdo faz com que Bolsonaro resulte em um
personagem de expressa identificação. O elemento simplista e não convencional
do candidato contrasta diretamente com a previsibilidade típica da tradicional
classe política brasileira. Trata-se da versão tupiniquim do efeito Trump na
sociedade estadunidense.
Por fim, é evidente
que os lados contra e pró não estão
levando a discussão sob as mesmas premissas. Enquanto, para um lado, o posicionamento extremado de Bolsonaro é justamente
o fator que o descaracteriza como alternativa legítima ao mais alto posto do
Executivo nacional, para o outro, é
justamente nessa postura que reside a sua legitimidade para a presidência.
No primeiro grupo estão os que evidenciam em seu discurso autoritário os aspectos
antidemocráticos e iliberais
inadmissíveis à figura de um republicano.
No segundo grupo estão aqueles que realçam justamente os
aspectos de força, coragem e espontaneidade como bem quistos à figura de um
forte líder político. Em outras palavras,
os fatos se tornam secundários quando o embate entra no campo das narrativas
que se fazem deles.
Sob o ponto de vista eleitoral, a potencialidade
do candidato é também a sua maior debilidade. As narrativas de resistência
aumentam à medida que a campanha joga luz sobre essas contradições. A resistência
organizada, principalmente pelas mulheres, em torno dos movimentos “ele não”,
“ele nunca” e “mulheres contra o fascismo” tem um potencial importante a ser
explorado contra o candidato. Pouco a pouco a crítica e a reflexão confrontam a
irrazoabilidade da figura de Bolsonaro. Tudo leva a crer que este é um
movimento sem volta e que só faz ganhar adeptos entre setores intelectuais,
políticos, de movimentos sociais e da classe artística nacional.
Por fim, cabe
ressaltar que Arendt não pretendeu abdicar Eichmann e os nazistas das
responsabilidades cometidas em nome do fascismo. Tampouco deu a ele o aspecto
monstruoso que pintavam. Demonstrou, contudo, como os homens e mulheres de bem
em conjunturas históricas adversas são levados a apoiarem ideias equivocadas e
extremadas. O mal é de certa forma tão corriqueiro que acaba por ser
incorporado como algo extremamente trivial.
Para compreender o
apoio massivo às posturas autoritárias assumidas por Bolsonaro e Mourão, e
tantos outros que se identificam com eles, é preciso inevitavelmente
questionar, enquanto sociedade, em que aspectos da esfera pública estamos
falhando no sentido de tornar figuras autoritárias uma opção viável.
Compreender, nas palavras da filósofa, é “encarar a realidade sem preconceitos
e com atenção, e resistir a ela – qualquer que seja”. Celso Lafer adiciona que
“restaurar, recuperar e resgatar o espaço público que permite, pela liberdade e
pela comunicação, o agir conjunto” esteve na centralidade das preocupações
filosóficas de Hannah Arendt. Pensamento este formulado há mais de meio
século e tão pertinente nos dias atuais.
Lucas Eduardo
Silveira de Souza é mestrando em
Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).
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