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segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Três Teses equivocadas sobre os Direitos Humanos

Por Oscar Vilhena Vieira

Oscar Vilhena é professor de Direito da PUC-SP, Diretor Executivo do ILANUD/Brasil, Coordenador do Consórcio  Universitário pelos Direi­tos Humanos PUC-SP/Universidade de Columbia-NY/USP.




Direitos humanos, direito de bandido?
É muito comum encontrar pessoas que associam os direitos humanos com a defesa do crime ou ao menos dos criminosos. Esta associação não é fundada num simples equívoco, pois como os criminosos também são humanos, eles têm direitos. Se houve algo de revolucionário trazido pela Declaração Uni­versal de 1948, foi a ideia de universalidade dos direitos.

Por universalidade entenda-se a proposição de que todas as pessoas independentemente de sua condição racial, econômica, social, ou mesmo criminais, são sujeitos aos direitos humanos. Neste sentido, bandidos também têm direito a direitos humanos.

A afirmação. no entanto, é falaciosa, quando busca forjar a ideia de que o movimento de direitos humanos apenas se preo­cupa com o direito dos presos e suspeitos, desprezando os direi­tos dos demais membros da comunidade.
Esta falácia começou a ser difundida no Brasil, no inicio dos anos oitenta, por intermédio de programas de rádio e tablóides policiais.

Como os novos responsáveis pelo combate à crimina­lidade no início da transição para a democracia haviam sido fortes críticos da violência e do arbítrio perpetrado pelo Estado, houve uma forte campanha articulada pelos que haviam patro­cinado a tortura e os desaparecimentos para deslegitimar os novos governantes que buscavam reformar as instituições e pôr fim á práticas violentas e arbitrárias por parte dos órgãos de segurança.

Era fundamental para os conservadores demonstrar que as novas lideranças democráticas não tinham nenhuma condição de conter a criminalidade e que somente eles eram capazes de impor ordem á sociedade. Mais que isso, os con­servadores jamais toleraram a ideia de que os direitos deveriam ser estendidos ás classes populares de que, qualquer pessoa, independentemente de sua etnia, gênero, condição social ou mesmo condição de suspeito ou condenado, deveria ser respei­tada como sujeitos de direitos.

Outro objetivo desse discurso contrário aos direitos huma­nos, não apenas no Brasil, foi, e ainda é, buscar criar um conflito dentro das camadas menos privilegiadas da população, eximindo as elites de qualquer responsabilidade em relação à criminalidade.

Ao vilanizar os que comentem um crime, como se tosse um ato estritamente voluntário, dissociado de fatores sociais, como desigualdade, fragilidade das agências de aplicação da lei, desemprego ou falta de estrutura urbana, jogam a população vítima da violência apenas contra o criminoso, ficando as dites isentas de responsabilidades, pela exclusão social ou pela omissão do Estado, que impulsiona a criminalidade. Nesse contexto, associar a luta pelos direitos humanos à defesa de bandidos foi uma forma de buscar manter os padrões de violência perpetrados pelo Estado contra os negros e os pobres, criminosos ou não.

É evidente que, ao se contrapor a toda a forma de exclusão e (opressão, o movimento de direitos humanos não poderia deixar de incluir na sua agenda a defesa da dignidade daqueles que se encontram envolvidos com o sistema de justiça criminal. Isto não significa, porém, que o movimento de direitos humanos tenha se colocado, a qualquer momento, a favor do crime; aliás a luta contra a impunidade tem sido uma das principais bandei­ras dos militantes de direitos humanos. No entanto, esta luta deve estar pautada em critérios éticos e jurídicos, estabelecidos pelos instrumentos de direitos humanos e pela Constituição, pois toda vez que o Estado abandona os parâmetros da legalidade, ele passa a se confundir com o próprio criminoso, sob o pretexto de combatê-lo. E não há pior forma de crime do que aquele organizado pelo Estado.

Por fim, é fundamental que se diga que o movimento pelos direitos humanos tem uma agenda bastante mais ampla do que a questão dos direitos dos presos e dos suspeitos. Não seria Incorreto dizer que hoje a maior parte das organizações que advogam pelos direitos humanos estão preocupadas primordialmente com outras questões, como o racismo, a exclusão social, o trabalho infantil, a educação, o acesso à terra ou à moradia, o direito à saúde, a questão da desigualdade de gênero etc. O que há de comum corre todas essas demandas é a defesa dos grupos mais vulneráveis. Embora os direitos humanos sejam direitos de todos, é natural que as organizações não governamentais se dediquem à proteção daqueles que se encontra em posição de maior fragilidade dentro de uma sociedade.

Direitos humanos dificultam o trabalho das polícias
Durante muito tempo acreditou-se que havia uma incompa­tibilidade entre direitos humanos e segurança pública. E evi­dente que as diversas garantias atribuídas aos suspeitos e aos réus em um processo judicial tornam mais onerosos o trabalho daqueles que tem por missão responsabilizar os criminosos.

A investigação tem que ser mais criteriosa, as provas tem que ser colhidas cuidadosamente, as prisões só deve ser feitas com ordem judicial ou em flagrante delito, ao réu deve ser garantida a ampla defesa, o policiamento tem que se pautar em regras determinadas, tendo como limite as diversas liberdades dos cidadãos. Tudo isto sob o escrutínio judicial. Estas restrições, no entanto, paradoxalmente podem favorecer um sistema de segurança pública eficiente.

O trabalho da polícia está fundamentalmente estruturado em duas atividades: prevenção e repressão. Para que ambas as ativi­dades possam ser minimamente eficazes, as polícias dependem de uma mesma coisa: informação.

Por mais que os meios tecnológicos venham auxiliando o trabalho das polícias, o que verdadeiramente favorece a anteci­pação da atividade criminosa é a boa informação. Informação confiável e rapidamente transmitida àqueles que têm poder para tomar decisões é o instrumento mais eficaz à prevenção policial da criminalidade.

Da mesma forma, sem informação fidedigna, a polícia difi­cilmente inicia qualquer investigação Sem que alguém tenha visto uma pessoa rondando uma casa e esteja disposta a dizer isso à polícia, de nada servem computadores, rádios ou perícia técnica. Esses instrumentos só entram em campo quando há alguma forma de suspeita, o que se dá por intermédio de infor­mação. Boa informação.

De que forma as polícias podem ter acesso a esse elemento tão precioso na realização do seu trabalho? Um primeiro modo é por intermédio da coerção ou da extorsão: tortura, vio­lência, ameaça, ou dos famosos gansos, que são criminosos que vendem informações para as polícias. Estas informações, além de imoralmente conseguidas, normalmente são de baixa quali­dade, pois as pessoas sob coerção tendem a falar aquilo que o algoz quer e não necessariamente a verdade. Por outro lado, a informação vinda de criminosos depende da garantia de que os mesmos permanecerão impunes.

Uma segunda maneira de se obterem informações é a voluntariedade. Quando a população confia em sua polícia, esta é procurada por quem tem alguma suspeita, ou por alguém que testemunhou algo e quer contribuir numa investigação. Quando a população teme ou desconfia da polícia, especialmente a população mais vulnerável, ocorre uma ruptura no fluxo de informações e consequentemente uma redução da eficácia policial.

Para que a população confie na polícia é necessário que esta respeite a população, e os termos desse respeito são dados pelas regras de direitos humanos e pelo padrão de honestidade dos policiais. Quando se sabe que a polícia viola sistematicamente os direitos de jovens, de negros e da população mais carente em geral, dificilmente esta irá confiar na policia, quando forem vítimas, testemunhas e mesmo portadoras de alguma informação relevante para coibir o crime. Quando a policia é desonesta, também fica a população temerosa de fornecer qualquer infor­mação que pode lhe colocar em risco no futuro.

A percepção por parte da população de que a policia respeita os direitos humanos, é honesta e trata as pessoas de forma justa é indispensável na construção de boas relações com a comunidade, sem o que não há bom fluxo de informações. Destaque-se que não há polícia eficiente em qualquer lugar do mundo que não seja respeitadora dos direitos humanos. Nesse sentido os direitos humanos ao invés de constituírem uma barreira á eficiência policial, oferecem a possibilidade para que o aparato de segurança se legitime em face de população e consequentemente aumente a sua eficiência, seja na prevenção, seja na apuração de responsabilidades por atos criminosos. 

Direitos humanos ameaçam nossa soberania 
Não é incomum ouvirmos por parte de autoridades e de seg­mentos mais nacionalistas da população a queixa de que, a ação do movimento de direitos humanos é parte de uma cons­piração internacional voltada a limitar nossa soberania; de que a Anistia Internacional, ou outras entidades internacionais de defesa dos direitos humanos, não dispõem de qualquer legiti­midade para monitorar a atuação de nossas autoridades em relação as suas práticas no que se refere aos nossos cidadãos; de que essa é uma questão que só diz respeito ao Brasil, não devendo o Brasil ficar exposto internacionalmente.

Não é impróprio lembrar que o movimento de direitos huma­nos surge a partir da Segunda Guerra Mundial, que teve como produto a morte de mais de 45 milhões de pessoas. Um dos aspectos mais perversos dessa catástrofe humanitária é que a maioria das vítimas foi morta pelos seus próprios Estados.

Foram alemães mortos pela Alemanha, Russos mortos pela Rússia. Evi­dente que esses nacionais exterminados pelo aparato bélico e de segurança de seus Estados eram discriminados, em face de suas religiões, etnias ou posições políticas. O fato é que isso demons­trou que os Estados não poderiam ser os únicos fiadores da segu­rança e da dignidade de seus cidadãos.

A violação dos direitos de um brasileiro ou de um alemão não deve ser apenas um pro­blema para os seus compatriotas. Se partirmos do pressuposto de que temos direitos pelo simples fato de sermos humanos, a violação dos direitos de qualquer pessoa deve ser um problema de todos. Trata-se de uma agressão à toda a humanidade, e, por­tanto, é legítimo que pessoas de outras partes do mundo se pre­ocupem com o que ocorre no Brasil ou na Alemanha.

Por outro lado, é necessário refletir um pouco sobre o signifi­cado de soberania e da sua abrangência. A soberania surge como uma doutrina de justificação do poder absoluto do Estado, não só face à comunidade internacional, mas também em relação a outros poderes domésticos. No inicio do século XVI era importante afirmar a autoridade do Estado face ao poder da igreja ou dos impérios, assim como dos senhores feudais.

Com o tempo percebeu-se que a concentração do poder absoluta nas mãos do Estado havia se transformado numa ameaça constante aos seus próprios súditos, tanto que com as revoluções americana e fran­cesa a soberania passa por um processo de domesticação, ou seja, busca-se a sua limitação por intermédio de constituições e declarações de direitos.

Desta forma o exercício da soberania só será legítimo se capaz de respeitar os direitos das pessoas. A soberania passa então a estar a serviço das pessoas e não dos Estados. Com a democracia, completa-se a inversão do sentido da soberania, pois ela não mais é concebida como um atributo do príncipe, mas do cidadão. É o cidadão que detém o poder sobre sua própria vida e que deve determinar ao Estado de que forma se comportar. li nesse momento que deixamos de ser súditos e passamos a cidadãos.

Nesse sentido, quando o nosso Estado viola o direito de um cidadão, é ele que está agindo contra a soberania popular. Se para buscar evitar essas práticas a comunidade internacional se mobiliza e denuncia um Estado, na realidade, a sua ação busca favorecer os cidadãos daquele Estado, ou seja, a soberania popu­lar em detrimento da soberania absoluta. Assim, reagir à solidariedade internacional em nome da soberania só favorece aque­les que querem um ambiente de impunidade para que possam tranquilamente violar direitos humanos.

Conclusão
A gramática dos direitos humanos está fundada no pressu­posto moral de que todas as pessoas merecem igual respeito umas das outras. Somente a partir do momento em que formos capazes de agir em relação ao outro da mesma forma que gos­taríamos que agissem em relação a nós é que estaremos con­jugando essa gramática corretamente. Os argumentos de que direitos humanos são direitos de bandidos, de que atrapalham a atuação das polícias ou de que minam a soberania do Estado buscam destruir essa lógica.

Aderir a qualquer desses argumen­tos significa assumir a proposição de que algumas pessoas tem mais valor, outras menos, e de que ao Estado e seus funcionários cabe fazer a escolha de quais deverão ser respeitadas e quais poderão ser submetidas à exclusão, à tortura, à violência e à discriminação.

O Que penso
Em dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 68 anos (1948). Considero fundamental a proteção à vida, ainda mais daqueles que não tem assistência nenhuma do Estado, considero importante o trabalho dos ativistas dos direitos humanos, porém, na prática a teoria é outra.

Penso que o trabalho deve atender a quem sofre um ato desumano, pessoas que tem seus direitos violados.

Se numa ocorrência envolvendo atos de violência entre pessoas, os ativistas dos direitos humanos logo se apresentam querendo informações sobre a saúde de quem cometeu o crime, e esquece que ambos, vitima e acusado, precisam de apoio. Não há uma preocupação com a família da vítima, que em muitas situações não sabem a quem recorrer.

Assim, penso que tais ativistas devem atuar em todos os casos fazendo sua vigilância e cumprindo seu dever, de um lado, a quem pratica e, de outro, a quem sofre o dano.

Na prática a teoria é outra, porém, todos tem direito a direitos humanos.


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