Por Oscar Vilhena
Vieira
Oscar Vilhena é professor de Direito da PUC-SP, Diretor Executivo do ILANUD/Brasil, Coordenador do Consórcio Universitário pelos Direitos Humanos PUC-SP/Universidade de Columbia-NY/USP.
Direitos humanos, direito de bandido?
É muito comum encontrar pessoas que associam os direitos humanos com a
defesa do crime ou ao menos dos criminosos. Esta associação não é fundada num
simples equívoco, pois como os criminosos também são humanos, eles têm
direitos. Se houve algo de revolucionário trazido pela Declaração Universal de
1948, foi a ideia de universalidade dos direitos.
Por universalidade entenda-se
a proposição de que todas as pessoas independentemente de sua condição racial,
econômica, social, ou mesmo criminais, são sujeitos aos direitos humanos. Neste
sentido, bandidos também têm direito a direitos humanos.
A afirmação. no entanto, é falaciosa, quando busca forjar a ideia de que
o movimento de direitos humanos apenas se preocupa com o direito dos presos e
suspeitos, desprezando os direitos dos demais membros da comunidade.
Esta falácia começou a ser difundida no Brasil, no inicio dos anos
oitenta, por intermédio de programas de rádio e tablóides policiais.
Como os
novos responsáveis pelo combate à criminalidade no início da transição para a
democracia haviam sido fortes críticos da violência e do arbítrio perpetrado
pelo Estado, houve uma forte campanha articulada pelos que haviam patrocinado
a tortura e os desaparecimentos para deslegitimar os novos governantes que
buscavam reformar as instituições e pôr fim á práticas violentas e arbitrárias
por parte dos órgãos de segurança.
Era fundamental para os conservadores demonstrar que as novas lideranças
democráticas não tinham nenhuma condição de conter a criminalidade e que somente
eles eram capazes de impor ordem á sociedade. Mais que isso, os conservadores
jamais toleraram a ideia de que os direitos deveriam ser estendidos ás classes
populares de que, qualquer pessoa, independentemente de sua etnia, gênero,
condição social ou mesmo condição de suspeito ou condenado, deveria ser respeitada
como sujeitos de direitos.
Outro objetivo desse discurso contrário aos direitos humanos, não
apenas no Brasil, foi, e ainda é, buscar criar um conflito dentro das camadas
menos privilegiadas da população, eximindo as elites de qualquer
responsabilidade em relação à criminalidade.
Ao vilanizar os que comentem um
crime, como se tosse um ato estritamente voluntário, dissociado de fatores
sociais, como desigualdade, fragilidade das agências de aplicação da lei,
desemprego ou falta de estrutura urbana, jogam a população vítima da violência
apenas contra o criminoso, ficando as dites isentas de responsabilidades, pela
exclusão social ou pela omissão do Estado, que impulsiona a criminalidade. Nesse
contexto, associar a luta pelos direitos humanos à defesa de bandidos foi uma
forma de buscar manter os padrões de violência perpetrados pelo Estado contra
os negros e os pobres, criminosos ou não.
É evidente que, ao se contrapor a toda a forma de exclusão e (opressão,
o movimento de direitos humanos não poderia deixar de incluir na sua agenda a
defesa da dignidade daqueles que se encontram envolvidos com o sistema de
justiça criminal. Isto não significa, porém, que o movimento de direitos
humanos tenha se colocado, a qualquer momento, a favor do crime; aliás a luta
contra a impunidade tem sido uma das principais bandeiras dos militantes de
direitos humanos. No entanto, esta luta deve estar pautada em critérios éticos
e jurídicos, estabelecidos pelos instrumentos de direitos humanos e pela
Constituição, pois toda vez que o Estado abandona os parâmetros da legalidade,
ele passa a se confundir com o próprio criminoso, sob o pretexto de combatê-lo.
E não há pior forma de crime do que aquele organizado pelo Estado.
Por fim, é fundamental que se diga que o movimento pelos direitos
humanos tem uma agenda bastante mais ampla do que a questão dos direitos dos
presos e dos suspeitos. Não seria Incorreto dizer que hoje a maior parte das
organizações que advogam pelos direitos humanos estão preocupadas
primordialmente com outras questões, como o racismo, a exclusão social, o
trabalho infantil, a educação, o acesso à terra ou à moradia, o direito à
saúde, a questão da desigualdade de gênero etc. O que há de comum corre todas
essas demandas é a defesa dos grupos mais vulneráveis. Embora os direitos
humanos sejam direitos de todos, é natural que as organizações não
governamentais se dediquem à proteção daqueles que se encontra em posição de
maior fragilidade dentro de uma sociedade.
Durante muito tempo acreditou-se que havia uma incompatibilidade entre
direitos humanos e segurança pública. E evidente que as diversas garantias
atribuídas aos suspeitos e aos réus em um processo judicial tornam mais
onerosos o trabalho daqueles que tem por missão responsabilizar os criminosos.
A investigação tem que ser mais criteriosa, as provas tem que ser
colhidas cuidadosamente, as prisões só deve ser feitas com ordem judicial ou em
flagrante delito, ao réu deve ser garantida a ampla defesa, o policiamento tem
que se pautar em regras determinadas, tendo como limite as diversas liberdades
dos cidadãos. Tudo isto sob o escrutínio judicial. Estas restrições, no
entanto, paradoxalmente podem favorecer um sistema de segurança pública
eficiente.
O trabalho da polícia está fundamentalmente estruturado em duas
atividades: prevenção e repressão. Para que ambas as atividades possam ser
minimamente eficazes, as polícias dependem de uma mesma coisa: informação.
Por mais que os meios tecnológicos venham auxiliando o trabalho das
polícias, o que verdadeiramente favorece a antecipação da atividade criminosa
é a boa informação. Informação confiável e rapidamente transmitida àqueles que
têm poder para tomar decisões é o instrumento mais eficaz à prevenção policial
da criminalidade.
Da mesma forma, sem informação fidedigna, a polícia dificilmente inicia
qualquer investigação Sem que alguém tenha visto uma pessoa rondando uma casa e
esteja disposta a dizer isso à polícia, de nada servem computadores, rádios ou
perícia técnica. Esses instrumentos só entram em campo quando há alguma forma
de suspeita, o que se dá por intermédio de informação. Boa informação.
De que forma as polícias podem ter acesso a esse elemento tão precioso
na realização do seu trabalho? Um primeiro modo é por intermédio da coerção ou
da extorsão: tortura, violência, ameaça, ou dos famosos gansos, que são
criminosos que vendem informações para as polícias. Estas informações, além de
imoralmente conseguidas, normalmente são de baixa qualidade, pois as pessoas
sob coerção tendem a falar aquilo que o algoz quer e não necessariamente a
verdade. Por outro lado, a informação vinda de criminosos depende da garantia
de que os mesmos permanecerão impunes.
Uma segunda maneira de se obterem informações é a voluntariedade. Quando
a população confia em sua polícia, esta é procurada por quem tem alguma
suspeita, ou por alguém que testemunhou algo e quer contribuir numa
investigação. Quando a população teme ou desconfia da polícia, especialmente a
população mais vulnerável, ocorre uma ruptura no fluxo de informações e
consequentemente uma redução da eficácia policial.
Para que a população confie na polícia é necessário que esta respeite a
população, e os termos desse respeito são dados pelas regras de direitos
humanos e pelo padrão de honestidade dos policiais. Quando se sabe que a
polícia viola sistematicamente os direitos de jovens, de negros e da população
mais carente em geral, dificilmente esta irá confiar na policia, quando forem
vítimas, testemunhas e mesmo portadoras de alguma informação relevante para
coibir o crime. Quando a policia é desonesta, também fica a população temerosa
de fornecer qualquer informação que pode lhe colocar em risco no futuro.
A percepção por parte da população de que a policia respeita os direitos
humanos, é honesta e trata as pessoas de forma justa é indispensável na
construção de boas relações com a comunidade, sem o que não há bom fluxo de
informações. Destaque-se que não há polícia eficiente em qualquer lugar do
mundo que não seja respeitadora dos direitos humanos. Nesse sentido os direitos
humanos ao invés de constituírem uma barreira á eficiência policial, oferecem a
possibilidade para que o aparato de segurança se legitime em face de população
e consequentemente aumente a sua eficiência, seja na prevenção, seja na
apuração de responsabilidades por atos criminosos.
Não é incomum ouvirmos por parte de autoridades e de segmentos mais
nacionalistas da população a queixa de que, a ação do movimento de direitos
humanos é parte de uma conspiração internacional voltada a limitar nossa
soberania; de que a Anistia Internacional, ou outras entidades internacionais
de defesa dos direitos humanos, não dispõem de qualquer legitimidade para
monitorar a atuação de nossas autoridades em relação as suas práticas no que se
refere aos nossos cidadãos; de que essa é uma questão que só diz respeito ao
Brasil, não devendo o Brasil ficar exposto internacionalmente.
Não é impróprio lembrar que o movimento de direitos humanos surge a
partir da Segunda Guerra Mundial, que teve como produto a morte de mais de 45
milhões de pessoas. Um dos aspectos mais perversos dessa catástrofe humanitária
é que a maioria das vítimas foi morta pelos seus próprios Estados.
Foram alemães mortos pela Alemanha, Russos mortos pela Rússia. Evidente
que esses nacionais exterminados pelo aparato bélico e de segurança de seus Estados
eram discriminados, em face de suas religiões, etnias ou posições políticas. O
fato é que isso demonstrou que os Estados não poderiam ser os únicos fiadores
da segurança e da dignidade de seus cidadãos.
A violação dos direitos de um brasileiro ou de um alemão não deve ser
apenas um problema para os seus compatriotas. Se partirmos do pressuposto de
que temos direitos pelo simples fato de sermos humanos, a violação dos direitos
de qualquer pessoa deve ser um problema de todos. Trata-se de uma agressão à
toda a humanidade, e, portanto, é legítimo que pessoas de outras partes do
mundo se preocupem com o que ocorre no Brasil ou na Alemanha.
Por outro lado, é necessário refletir um pouco sobre o significado de
soberania e da sua abrangência. A soberania surge como uma doutrina de
justificação do poder absoluto do Estado, não só face à comunidade
internacional, mas também em relação a outros poderes domésticos. No inicio do
século XVI era importante afirmar a autoridade do Estado face ao poder da igreja
ou dos impérios, assim como dos senhores feudais.
Com o tempo percebeu-se que a concentração do poder absoluta nas mãos do
Estado havia se transformado numa ameaça constante aos seus próprios súditos,
tanto que com as revoluções americana e francesa a soberania passa por um
processo de domesticação, ou seja, busca-se a sua limitação por intermédio de
constituições e declarações de direitos.
Desta forma o exercício da soberania só será legítimo se capaz de
respeitar os direitos das pessoas. A soberania passa então a estar a serviço
das pessoas e não dos Estados. Com a democracia, completa-se a inversão do
sentido da soberania, pois ela não mais é concebida como um atributo do
príncipe, mas do cidadão. É o cidadão que detém o poder sobre sua própria vida
e que deve determinar ao Estado de que forma se comportar. li nesse momento que
deixamos de ser súditos e passamos a cidadãos.
Nesse sentido, quando o nosso Estado viola o direito de um cidadão, é
ele que está agindo contra a soberania popular. Se para buscar evitar essas
práticas a comunidade internacional se mobiliza e denuncia um Estado, na
realidade, a sua ação busca favorecer os cidadãos daquele Estado, ou seja, a
soberania popular em detrimento da soberania absoluta. Assim, reagir à
solidariedade internacional em nome da soberania só favorece aqueles que
querem um ambiente de impunidade para que possam tranquilamente violar direitos
humanos.
Conclusão
A gramática dos direitos humanos está fundada no pressuposto moral de
que todas as pessoas merecem igual respeito umas das outras. Somente a partir
do momento em que formos capazes de agir em relação ao outro da mesma forma que
gostaríamos que agissem em relação a nós é que estaremos conjugando essa
gramática corretamente. Os argumentos de que direitos humanos são direitos de
bandidos, de que atrapalham a atuação das polícias ou de que minam a soberania
do Estado buscam destruir essa lógica.
Aderir a qualquer desses argumentos significa assumir a proposição de
que algumas pessoas tem mais valor, outras menos, e de que ao Estado e seus
funcionários cabe fazer a escolha de quais deverão ser respeitadas e quais
poderão ser submetidas à exclusão, à tortura, à violência e à discriminação.
O Que penso
Em dezembro, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 68 anos (1948). Considero fundamental a proteção à vida, ainda mais
daqueles que não tem assistência nenhuma do Estado, considero importante o
trabalho dos ativistas dos direitos humanos, porém, na prática a teoria é
outra.
Penso que o trabalho deve atender a quem sofre um ato desumano, pessoas que tem seus direitos violados.
Se numa ocorrência envolvendo atos de
violência entre pessoas, os ativistas dos direitos humanos logo se apresentam
querendo informações sobre a saúde de quem cometeu o crime, e esquece que ambos, vitima e acusado, precisam de apoio. Não há uma preocupação com a família da vítima, que em muitas
situações não sabem a quem recorrer.
Assim, penso que tais ativistas devem atuar em
todos os casos fazendo sua vigilância e cumprindo seu dever, de um lado, a quem
pratica e, de outro, a quem sofre o dano.
Na prática a teoria é outra, porém, todos tem direito a direitos humanos.
0 comentários:
Postar um comentário