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sexta-feira, 14 de julho de 2023

Por que Karl Marx não aprovava a propriedade privada?


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  1. Há uma falsa pressuposição na pergunta que impede a resposta desejada. Trata-se do erro em pressupor que Marx tinha um julgamento ético e moral a respeito da propriedade privada, da burguesia e do capitalismo. Marx, em diversas oportunidades, foi enfático em esclarecer que sua teoria não tinha por missão propor um modelo justo e ideal de sociedade, mas demonstrar que o capitalismo é um modo de produção social transitório, tal qual os modos de produção anteriores (basicamente, comunismo primitivo, escravismo e feudalismo).
  2. Feito este esclarecimento, é preciso então dizer o seguinte. Para Marx, a propriedade privada dos meios de produção somente existe em determinadas formas de sociedade, e está estreitamente ligada com o surgimento da divisão social do trabalho (trabalho de homens e mulheres, trabalho urbano e trabalho rural etc.) e da atividade mercantil, que começou com o escambo há milhares de anos, e deu origem ao escravismo, ao patriarcado e ao Estado.
  3. Segundo seus estudos, o capitalismo é a última forma de existência da propriedade privada, que desaparecerá não por ser injusta, perversa, etc, mas por se tornar caduca, por não corresponder mais ao crescimento das forças produtivas da sociedade. Haveria, portanto, um choque entre o elevado desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, movida à grandes máquinas e à alta tecnologia, com as relações jurídicas, políticas e sociais firmadas em torno da propriedade privada.
  4. O prolongamento desse choque social acarretaria inevitavelmente uma revolução social, único modo de se romper esse obstáculo no desenvolvimento das forças produtivas, revolução essa que teria duas fases: uma fase socialista, com a organização da produção e das relações sociais, onde se daria a cada pessoa uma quota da produção social de acordo com a quantidade de seu trabalho; e uma segunda e última fase, que seria o comunismo, onde desapareceria definitivamente a propriedade privada, a divisão social do trabalho, a mercadoria e o dinheiro, as classes sociais e o domínio de um homem sobre o outro, o Estado e as formas de coerção jurídica, como, por exemplo, os diferentes tipos de governos, e o domínio da maioria sobre a minoria. No comunismo, cada um receberia uma parte da riqueza social não mais de acordo com seu trabalho, mas de acordo com sua necessidade.
  5. Essa última etapa (comunismo) somente poderá ser atingida simultaneamente por todos os países do mundo após o completo exaurimento da atividade mercantil e das correspondentes formas políticas e jurídicas.
  6. Como foi que Marx chegou a essa conclusão? Em apertadíssimas palavras, ele examinou o capital, essa forma fundamental de atividade social existente no mundo há mais ou menos 500 anos (mercantilismo, revolução industrial, domínio do sistema financeiro, etc.), e verificou que as crises econômicas ocorriam por um motivo curioso: a elevação da produtividade do trabalho, que acarretava, de um lado, a superprodução de mercadorias, de outro, a queda da taxa de lucro. Ele descobriu que isso se dava por causa do inevitável progresso tecnológico, que fazia com que o capital formado pelos meios de produção (máquinas, matéria prima, etc), aumentasse proporcionalmente mais que o capital formado pela força de trabalho. Ora, não foi Marx, mas os economistas Adam Smith (Escócia, século XVIII) e David Ricardo (Inglaterra, século XIX) quem primeiro descobriram (em contraponto aos fisiocratas, como Quesnay) que o segredo do valor da mercadoria, da mais-valia, do lucro e do próprio capital decorria de uma certa quantidade de trabalho empregado na produção. Sem trabalho não é possível haver mais-valia, lucro e capital. Marx aprofundou essa descoberta de seus antecessores e descobriu a mais-valia, que é formada pela exploração do trabalho não-pago, e que é o segredo do lucro e do capital.
  7. Eis o segredo das crises capitalistas: com o aumento da atividade produtiva do trabalho, aumentam os meios de produção, mas decresce o emprego de força de trabalho, diminuindo a grandeza de valor-trabalho, portanto, de lucro e de liquidez do capitalismo. Forma-se uma pletora de dinheiro podre gerado artificialmente por conta dos empréstimos e juros bancários que não tem nenhum lastro na produção. O capital é uma relação social, e se forma e se metamorfoseia em capital monetária, capital produtivo e capital mercadoria. Essas três formas formam uma unidade, sendo que só na forma produtiva ele cria valor novo.
  8. É fácil entender o que estas crises periódicas querem dizer: o sistema de capital não suporta certos níveis de produtividade e crescimento. Ora, é simplesmente irracional que a atividade econômica entre em crise por causa de sua pujança produtiva. É simplesmente absurdo que ocorra paralisia na atividade produtiva por conta do progresso tecnológico. Deveria, portanto, parecer óbvio que a elevação da produtividade social não pode gerar carência, mas abundância.
  9. Por isso que, a exemplo de 1929 e 2008, periodicamente o sistema capitalista entra em colapso. A primeira crise mundial do capitalismo ocorreu em 1825, e desde então, o capitalismo vive crises cíclicas, e sempre se recompõe, destruindo mananciais gigantescos de riquezas. A última grande destruição foi a segunda guerra, que devastou a Europa, mas propiciou "anos dourados" ao capital, puxado desde então pela grande locomotiva dos EUA. Mas esses anos dourados expiraram nos anos 70, e desde então, crises e mais crises ocorrem, sendo a última em 2008. Quando será a próxima?
  10. Mais importante do que saber quando ocorrerão novas crises, é perceber que, de uma perspectiva histórica, não é razoável admitir que o capitalismo, que tem apenas 500 anos, é a forma permanente e mais elevada de atividade social e econômica, afinal, o escravismo, que durou 5.000 anos, um dia se tornou caduco e desapareceu. Da mesma forma, o feudalismo, que durou mil anos e também ficou caduco e desapareceu.
  11. Ora, é bastante razoável supor que o capitalismo, nesse sentido histórico mais alargado, também terá que dar lugar em algum momento a uma forma mais racional e desenvolvida de sociedade. As revoluções socialistas do século XX foram as primeiras experiências e os primeiros sinais da história que essa transformação não só é possível, mas já está em movimento, afinal, nenhum sistema social que não consegue manter viva a humanidade pode se sobrepor à própria força revolucionária inerente ao trabalho e à inteligência humana.
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Excelente explanação do pensamento de Marx sobre esse assunto (algo muito mal compreendido e envolto em inúmeros mitos no discurso atual que ouvimos). Além disso, muito bem escrita. Obrigado!

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Foto de perfil de Omar Torres Rodriguez
Resposta excelente e documentada. Indica o domínio da questão. Vou tentar traduzi-lo para o espanhol para que alcance mais pessoas, e especialmente um indivíduo que parece ter lido alguns dos escritos de Marx, mas não entendeu nada e escreve em Quora (com muita frequência e com ar de um homem sábio)…
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Gracias. Grande abraço!

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Que desperdício! Analisar Marx. Monta uma empresa para fazer alguma coisa útil.

Reginaldo Carvalho
Provavelmente é mais um que anti-marxista que nunca leu nem uma linha de seu pensamento. Não há nada mais ignóbil do que se posicionar sobre algo que não conhecemos!
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Baita aula

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Penso de modo diverso: A mola propulsora do Capitalismo é a liberdade e não o lucro. Este é consequência daquela.

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1. De fato, o capitalismo não poderia existir sem a liberdade, e foi precisamente em torno desse ideal filosófico, político e jurídico que se deram as grandes revoluções do século XVIII. 2. Mas a liberdade é apenas um pressuposto político e jurídico para a formação dos mercados. Ninguém vai ao mercado em b…
Marcos Alves
Só que Marx errou pois atribuiu a essência do lucro à mais valia, uma forma quase corrupta na qual o empresário teoricamente oculta o valor real do trabalho embutido em um produto e locupleta-se dele às custas do empregado: isso é falso e hoje sabemos tratar-se de uma falácia pois uma empresa real tira valor da estrutura propiciada aplicada ao trabalho do contratado, senão vejamos: um programador sozinho pode fazer um código que per si não tem grande valor monetario. Mas se esté código é anexado ao Windows e usado por milhões de usuários, passa a ter um valor que nunca poderia ter isolado. Isso ocorre em várias outras áreas do trabalho e é um fato que Marx falhou miseravelmente em discernir. O resultado em uma empresa é exponencialmente maior que a soma das partes e, quanto melhor e mais inovadora, maior este fator. A teoria da mais valia, fundamento do socialismo, é sim uma teoria caduca e equivocada, escrita por uma mente doentia que só enxergou a dissimulação e fraude nas relações humanas, e merece sim ser banida para o mais escuro e profundo buraco na história da humanidade por questionar a própria alma humana, que por fim é o que realmente nos retirou do destino medíocre das cavernas.
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Essa explicação é excelente. Os estudos de Marx sobre o capital levam em conta exatamente essa perspectiva puramente metodológica Eu não acho que seja possível aqui na internet sequer entrar no assunto de que a metodologia de Marx possuia diversos juízos de valor implícitos, pois se fundamentava em p…
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Obrigado pelo comentário. Permita-me, contudo, fazer um contraponto: a dialética materialista, que considera a realidade objetiva essencialmente contraditória e que os opostos formam uma unidade em constante movimento e transformação, está de pleno acordo com a não-linearidade e dinamismo a que você…
Danilo Henrique
Não-linearidade é como chamamos sistemas que obedecem a mais de uma relação, de maneira sobreposta, sem a possibilidade de uma síntese única. É o oposto da dialética, onde os polos opostos convergem em uma síntese. Não cabe dialética e não-linearidade. A dialética não se aplica, aliás, a nenhum fenômeno concreto, é uma forma de pensar restrita à abstrações filosóficas e não encontra nenhuma aplicabilidade concreta. Marx acreditava que poderia conciliar a dialética tradicional com as ciências emergentes e bolou uma tentativa ousada e original. Merece crédito por isso. Mas há abstrações nas matemáticas atuais bem mais consistentes para explicar a complexidade sistêmica da realidade sócio-econômica